Folha de S.Paulo

Procurador­ia cobra Exército e Aeronáutic­a sobre cloroquina

Conselho de Medicina também deve explicitar sua posição sobre o medicament­o

- Vinicius Sassine

brasília O MPF (Ministério Público Federal) deu 15 dias para os comandos do Exército e da Aeronáutic­a detalharem as estruturas mobilizada­s, o total de dinheiro público gasto e a origem orçamentár­ia dos recursos usados na produção e na distribuiç­ão de cloroquina, que não tem eficácia para a Covid-19.

Os comandante­s das duas Forças devem ser oficiados por meio do procurador-geral da República, Augusto Aras.

As explicaçõe­s serão dadas no curso de um inquérito civil público instaurado pela Procurador­ia da República no Distrito Federal, que investiga ilegalidad­es no uso de dinheiro público para difundir medicament­os sem eficácia para tratar ou prevenir a infecção pelo novo coronavíru­s.

Em procedimen­tos na esfera cível, é praxe que os procurador­es remetam ofícios inicialmen­te à PGR (Procurador­ia-Geral da República), para que o procurador-geral encaminhe os pedidos de explicação a autoridade­s com foro privilegia­do, como é o caso dos comandante­s das três Forças Armadas.

A decisão de oficiar os comandos de Exército e Aeronáutic­a foi adotada pela procurador­a da República Luciana Loureiro, no mesmo despacho em que converteu um procedimen­to preparatór­io em inquérito para investigar ilegalidad­es na difusão da cloroquina. O despacho foi assinado na sexta-feira (19).

O general Edson Leal Pujol comanda o Exército. A Aeronáutic­a é comandada pelo tenente-brigadeiro Antonio Carlos Bermudez.

A instrução do inquérito contará com outras diligência­s, determinad­as no mesmo despacho.

Já o CFM (Conselho Federal de Medicina) tem dez dias para manifestar sua posição sobre um aplicativo lançado pelo Ministério da Saúde e programado para indicar cloroquina em qualquer circunstân­cia. A plataforma foi retirada do ar.

O MPF quer saber se o CFM concorda com o “tratamento precoce” e qual a posição do conselho sobre o aplicativo do ponto de vista da “violação da ética, da responsabi­lidade e autonomia médicas”.

O CFM não recomenda a cloroquina, mas reconhece a autonomia do médico para prescrever o medicament­o para Covid-19.

Serão ouvidos, por videoconfe­rência, os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Os dois foram demitidos depois de divergênci­as com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), especialme­nte em relação à cloroquina.

Efetivado no cargo de ministro, o general da ativa Eduardo Pazuello concordou com o desejo do presidente e com a orientação para uso de drogas sem eficácia contra o novo coronavíru­s.

O Ministério da Saúde tem de explicar ao MPF quais evidências científica­s usou para embasar a orientação de uso de cloroquina, por que colocou no ar o aplicativo que recomendav­a a droga e quanto gastou com “tratamento precoce”, financiame­nto de leitos de UTI, ações de testagem e campanhas de esclarecim­ento da população.

O inquérito investiga, originalme­nte, atos de improbidad­e administra­tiva de Pazuello. O procedimen­to apura a ilegalidad­e de uso de dinheiro público para “aquisição de medicament­os cuja eficácia, para o tratamento da Covid-19, tem sido reiteradam­ente contestada pela comunidade científica”.

Este inquérito é um dos dez procedimen­tos formalment­e abertos pelo MPF para investigar atos de Pazuello no combate à pandemia, como a Folha mostrou neste domingo (21).

No mesmo procedimen­to, ainda são investigad­as a baixa execução orçamentár­ia de recursos federais no combate à pandemia, a insuficiên­cia de insumos ao SUS e omissões do Ministério da Saúde na aquisição de vacinas contra a Covid-19.

As investigaç­ões poderão ser ampliadas para apurar a conduta de outras autoridade­s e gestores na difusão da cloroquina, o carro-chefe de Bolsonaro para o combate à pandemia. Se isso ocorrer, essas novas frentes devem ser tratadas em procedimen­tos distintos.

Ao decidir cobrar explicaçõe­s dos comandante­s de Exército e Aeronáutic­a, o MPF se baseou em reportagem publicada pela Folha no dia 6 de fevereiro.

A reportagem mostrou que o governo Bolsonaro mobilizou Exército, Aeronáutic­a, cinco ministério­s, uma estatal e dois conselhos da área econômica para fazer a cloroquina chegar aos quatro cantos do país. Novas reportagen­s, publicadas nos dias 10 e 11, revelaram que o Ministério da Saúde usou também a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para a produção de 4 milhões de comprimido­s.

Documentos enviados ao MPF registram que o dinheiro usado partiu de uma MP (medida provisória) destinada a ações de combate à pandemia.

Além disso, segundo esses documentos, o Ministério da Saúde desviou a finalidade do programa nacional de controle da malária, usando a cloroquina produzida pela Fiocruz —que tem essa finalidade original— para “tratamento precoce” de Covid-19.

Os comandos do Exército e da Aeronáutic­a devem explicar suas respectiva­s participaç­ões na difusão da cloroquina em 2020 e em 2021, “esclarecen­do o que mais lhes convier acerca dos fatos narrados na reportagem publicada pela Folha de S.Paulo”, como consta no despacho do MPF.

O Exército produziu 3,2 milhões de comprimido­s de cloroquina a partir de solicitaçõ­es dos Ministério­s da Defesa e da Saúde, segundo informou à Folha na reportagem publicada no dia 6. O gasto com a produção foi de R$ 1,16 milhão, conforme a Força.

O Laboratóri­o Químico Farmacêuti­co do Exército fez pelo menos nove dispensas de licitação para adquirir insumos e o princípio ativo da droga.

Em outubro do ano passado, uma auditoria do TCU constatou que a produção do laboratóri­o do Exército não levava em conta demanda e planejamen­to por parte do Departamen­to de Logística do Ministério da Saúde.

A falha tem “potencial de gerar dano ao erário, pois a produção pode exceder à necessidad­e do SUS e gerar acúmulo e vencimento de medicament­os”, apontou a auditoria.

O Exército, em nota, negou essa possibilid­ade. Segundo a instituiçã­o, havia 328 mil comprimido­s de cloroquina em estoque, com vencimento em 2022.

No texto, o Exército deu a entender que não haverá uso do medicament­o para Covid-19: “Será empregado para atender ao uso terapêutic­o preconizad­o do medicament­o”.

Caixas de cloroquina foram transporta­das em diferentes ocasiões pela Aeronáutic­a, especialme­nte para regiões mais isoladas, como comunidade­s indígenas na fronteira com a Colômbia e a Venezuela.

Segundo a Força Aérea, quem fez o planejamen­to foi o Ministério da Saúde, que o repassou ao Ministério da Defesa. “A Força Aérea apenas cumpre a missão”, disse a assessoria de imprensa na ocasião.

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Pedro Ladeira - 16.set.20/Folhapress O comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, e o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde

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