Folha de S.Paulo

Como ser melhor do mundo

Sem fazer nada para desenvolve­r futebol feminino, Brasil teve e tem grandes talentos

- Renata Mendonça Jornalista, comenta na Globo e é cofundador­a do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte

Nenhum país do mundo sabe produzir talentos para o futebol como o Brasil. Vale para o masculino e também para o feminino. Mas o fenômeno com as mulheres é ainda mais expressivo.

Porque o Brasil nunca fez nada para incentivar meninas a jogarem futebol. Pelo contrário, fez de tudo para impedi-las. Proibiu o jogo para elas por quatro décadas, não fomentou a prática nas escolas ou clubes, demorou a criar campeonato­s, ignorou a existência delas pelo tempo que pôde.

E, mesmo assim, o Brasil teve Roseli, uma das melhores finalizado­ras que o futebol já viu. Teve Michael Jackson, a artilheira de mais de mil gols. Teve Sissi, e eu busco uma definição melhor em português para nossa Imperatriz do futebol do que “world-class”. Sissi enxergava o jogo mais rápido do que todas as outras, com os passes mais impression­antes e as cobranças de falta mais precisas.

Acima de tudo, sem esforço nenhum, o Brasil produziu a melhor de todos os tempos, Marta, que fez 35 anos na última semana e há quase duas décadas é a referência absoluta para as mulheres no futebol. Aliás, o Brasil fez esforço para Marta desistir. Em Dois Riachos (AL), ela não podia disputar campeonato­s com os meninos. Foi para o Rio de Janeiro jogar no Vasco, e o clube encerrou os trabalhos do time feminino. Precisou sair do país para seguir a carreira.

Sem nenhum investimen­to, sem nenhuma estrutura, o Brasil teve todas essas e tem também Cristiane, uma das maiores artilheira­s que o mundo já viu, e Formiga, o pulmão do futebol mundial, que aos 42 anos segue voando em campo. Mas não se coloca uma seleção no topo só com talentos. É preciso trabalho. E foi isso que o Brasil abdicou de fazer por décadas.

No domingo, a seleção feminina enfrentou os Estados Unidos, que dominam o futebol entre as mulheres há três décadas. Do lado delas, estava uma brasileira, Catarina Macario, a camisa 11 que não entrou em campo. Nascida em São Luís (MA), ela foi para lá aos 12 anos porque aqui não encontrou clubes onde pudesse jogar com meninas. Na época, não tinha campeonato nem adulto para as mulheres jogarem.

Em solo americano, Macario teve todas as oportunida­des para se tornar jogadora. Disputou competiçõe­s desde essa idade, foi para o futebol universitá­rio, se destacou em todas as categorias. Com toda a formação nos Estados Unidos, ela optou por representa­r a seleção americana em vez de vestir a camisa amarela. Para muitos, isso é um “insulto”. Para mim, é o justo. Macario vai dedicar seu talento ao país que deu a ela condições de se tornar jogadora. Se tivesse continuado no Brasil, é bem provável que não estivesse mais jogando.

A seleção americana tem oito categorias de base (sub-14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 23), o Brasil tem duas (sub-17 e 20). Um estudo da Fifa de 2019 mostrou que existiam 1,5 milhão de meninas nos Estados Unidos abaixo de 18 anos registrada­s em times de futebol e disputando competiçõe­s. O Brasil tinha 475 meninas nas mesmas condições.

A primeira competição oficial de base em nível nacional aconteceu em 2019.

Só agora passamos a ter um olhar para a formação das jogadoras, um trabalho que ainda é embrionári­o nos clubes e que começa a ser mais bem lapidado na seleção.

Sem nunca termos feito nada, produzimos tantos talentos como os já citados acima. Imagina o potencial que temos agora, que finalmente começamos a fazer alguma coisa. É uma questão de tempo para sermos as melhores do mundo. Resta termos paciência (porque resultados não vêm da noite para o dia) e darmos condição de trabalho e estrutura para as mulheres chegarem lá.

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