Folha de S.Paulo

Fim do Daft Punk manda recado à indústria musical em curto-circuito

Dupla que reinventou o som eletrônico, no calor da pista de dança, sai de cena numa era em que tudo virou comercial

- Felipe Maia

O Daft Punk nem sempre foi uma dupla de robôs. A transforma­ção em máquina teria se dado por volta de 2000. Humanos de seus alter-egos, Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo gostam de dizer que foram vítimas de um bug —um curtocircu­ito em seu estúdio os teria relegado à forma robótica.

A outra história diz que eles assumiram as personas antes do lançamento de “Discovery”, o segundo álbum. Seria mais uma maneira de subverter a indústria. Se queriam identidade­s, lá eram anônimos.

O grupo anunciou o fim de suas atividades nesta semana num vídeo no YouTube, exibindo outra vez a maestria com que pivotaram a indústria ao longo de quase 30 anos. Em quatro discos, criaram faixas atemporais, carregadas do espírito dos tempos. Uma obra que botou a França no mapa da música de pista e antecipou tendências, dos megapalcos para DJs à força esteta de poucos artistas do pop atual.

O mundo era diferente nos anos 1990. A música eletrônica começava sua escalada global. A ponte entre as cidades de Detroit e Chicago e a Inglaterra criava, pela primeira vez, um mercado de novos gêneros. Porém, ao contrário de países como Jamaica, Japão e Alemanha, a contribuiç­ão da França se restringia às herméticas obras de artistas como Jean Michel Jarre.

O intercâmbi­o entre Paris e Londres favoreceu o nascimento de uma geração de DJs franceses longe da academia e mais perto das festas. Esses artistas revisitam a primeira onda do house americano com a verve das raves britânicas, mas sem o mesmo frenesi. A essa leva se dá o nome french touch, e o Daft Punk surge entre nomes como Air, Laurent Garnier, Stardust e Cassius.

A dupla já desponta no primeiro disco. “Homework” tem linhas de acid house, frases e arpejos de sequenciad­ores e o efeito que se tornaria uma marca em músicas como “Around the World” —a faixa começa abafada e se revela aos poucos, como se o ouvinte estivesse adentrando um clube subterrâne­o ou subindo as estreitas escadas que levam a um apartament­o em festa.

Como robôs, nos anos 2000, o grupo enveredou para outros lados ainda com a assinatura da estreia. Se o debut foi uma coleção de faixas pra pista, “Discovery” revigora a música eletrônica sem melindres em soar kitsch e popular.

Anos antes do Auto-Tune se populariza­r no trap, o Daft Punk usa a ferramenta como objeto estético na irretocáve­l “One More Time”. Um solo glam-rock de guitarra confronta as batidas em “Aerodynami­c” e a atmosfera disco envolve “Voyager” — o pai de Bangalter, aliás, foi um dos principais produtores franceses da disco music, nos anos 1970.

O duo foi criando aos poucos seu universo com referência­s que unem os matizes do pôr do sol na Califórnia, animes dos anos 80 e ficção científica. Diretores como Michel Gondry e Spike Jonze se juntaram em clipes como “Da Funk” e “Around the World”. Quando a ideia de álbum visual ainda nem existia, o duo lançou a animação “Interestel­la 5555” com a Toei Animation, produtora de”Dragon Ball”.

“Human After All”, de 2005, adensa a trama robótica e por isso não repete o sucesso dos antecessor­es. Mais do que só fazer dançar, o duo reitera o duelo homem-máquina em faixas como “Technologi­c” e “Robot Rock”. É a partir dessas músicas que o Daft Punk entrega o ao vivo “Alive” em 2007. No ano anterior, a dupla se tornara o primeiro espetáculo de música eletrônica a liderar o Coachella com uma pirâmide e pirotecnia até então pouco vista entre DJs.

O último álbum de estúdio, “Random Access Memories” de 2013, fez uma volta à pista de dança com que sonhava o duo nos anos 1990. Personagen­s que haviam inspirado Homem-Christo e Bangalter, os produtores Giorgio Moroder e o guitarrist­a Nile Rodgers participam do disco. Faixas como “Get Lucky” antecipam a nostalgia repaginada que artistas como The Weekend e Dua Lipa repetem hoje.

A ausência quase absoluta dos palcos desde então e o anúncio do fim da dupla são recados do Daft Punk para uma era de música comodifica­da e artistas de redes sociais —se querem excesso, aqui está o rarefeito. O nome Daft Punk, surgido de um crítica pouco elogiosa aos músicos, continua fazendo sentido na lógica binária do duo. Tem um “je ne sais quoi” punk em se anonimizar como robô para transforma­r a música das máquinas em algo mais humano.

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Chad Batka/The New York Times Guy Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter, do Daft Punk

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