Folha de S.Paulo

Série ‘Allen v. Farrow’ assume só as dores dela

Documentár­io da HBO não passa de exercício de relações públicas com pouco de novo a dizer sobre história já antiga

- Inácio Araujo

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Allen v. Farrow ★☆☆☆☆

Direção: Kirby Dick e Amy Ziering. Na HBO Go, com episódios semanais

Com essa pandemia não dá mais para seguir a vida da vizinha nem para fazer futrica com os colegas de escritório —e não se vive apenas de BBB. Deve ser por isso que a HBO pensou em dar novo sopro à briga “Allen v. Farrow”, ou Woody Allen, o cineasta, e Mia Farrow, a atriz.

Quando qualquer casal se separa, sai sujeira para todo lado. Quando o casal é Mia Farrow e Woody Allen, há um oceano de poluição em volta.

A história vem dos anos 1990, quando o comediante resolveu trocar Mia Farrow por Soon-Yi Previn, filha adotiva da atriz, com quem teve um romance de vários anos.

O envolvimen­to com Previn começou quando ela já era maior, até onde se tem conhecimen­to, e Mia Farrow não tinha nenhum laço oficial com Allen —os dois nem mesmo viviam juntos— de modo que a notícia “Woody Allen namora a enteada” não resultou afinal em nenhum grande escândalo (um pequeno, sim).

Mas Farrow apareceu pouco depois com um vídeo em que sua filha biológica Dylan, que teria então uns seis ou sete anos, dizia que fora tocada em partes íntimas por Allen.

Segundo ela, o cineasta se revelou um tarado. De acordo com ele, Mia Farrow era uma mulher ressentida. A história ficou bem conhecida, mas na época acabou ficando o dito pelo não dito.

Woody Allen se casou com Previn, já está quase nas bodas de prata, mas a história voltou à tona com o MeToo.

Desculpem por recordar o que todos já sabem, mas isso é lembrado com infinitos detalhes na série documental que a HBO acaba de lançar no Brasil. São mais de quatro horas divididas em quatro capítulos. E, quatro horas depois, o espectador tem o direito de perguntar aonde afinal “Allen v. Farrow” o quer levar.

Assim como a autobiogra­fia de Woody Allen, aqui também se nota que cada frase, cada fotograma, parecem ter sido examinados com lupa pelos advogados. No caso, os de Mia Farrow, pois o trabalho dirigido por Kirby Dick e Amy Ziering não deixa dúvidas sobre de que lado está.

O que tem de especial esse documentár­io? A música. Mais do que as imagens, mais do que as palavras, ela é que nos indica o que sentir. Há música de felicidade ingênua, de mistério, de tensão, melancolia, solidão, para reflexão etc.

À parte isso, existe Dylan Farrow. Hoje mulher feita, ela continua a sustentar que o abuso sexual de que teria sido vítima não foi uma fantasia infantil, tampouco foi posto em sua cabeça pela mãe.

Woody Allen, que aparece somente em entrevista­s a programas de TV, responde que aos 57 anos (quando teria acontecido o fato) era um pouco tarde para iniciar a carreira de pedófilo. Vá saber.

O documentár­io da HBO segue ao ritmo de insinuaçõe­s que desembocam, naturalmen­te, no momento mais agitado do MeToo, no qual qualquer dúvida equivalia a uma condenação eterna.

Se toda a minissérie é, no conjunto, bem constrange­dora, aqui os contornos que ganha são especiais, pois nos põem diante de uma fileira de atores e atrizes afirmando seu arrependim­ento por ter trabalhado com Woody Allen.

É pelo menos patético. Pessoas que trabalhara­m com Woody Allen quando o processo estava fechado, sem que o diretor tivesse culpa reconhecid­a, aparecem para pedir desculpas por ter trabalhado com ele, restituem o salário para a caridade, esse tipo de coisa.

Pode ser ridículo, mas deixa claro que no mundo hollywoodi­ano as relações públicas são decisivas. E, a rigor, esta série documental não passa disso, de um exercício de relações públicas, tanto quanto a autobiogra­fia de Woody Allen, embora sem humor.

O cineasta descreveu a obra como um “trabalho de demolição crivado de falsidades” e negou novamente ter abusado sexualment­e de Dylan.

“Esses documentar­istas não estavam interessad­os na verdade”, escreveram Allen e Previn num comunicado.

Há momentos de documentaç­ão familiar abundante, como por exemplo, Woody Allen brincando com os filhos de Mia Farrow. É uma pena que, aqui, tais momentos sirvam apenas para sugerir que tal intimidade seria, desde sempre, reprovável.

De todo modo, não deixa de ser interessan­te que Farrow tenha documentad­o com tal intensidad­e sua vida e sobretudo a de seus filhos na casa no estado de Connecticu­t.

Mas isso surge no meio de um documentár­io com pouco de novo a dizer sobre essa história já antiga.

Se, ao que parece, mesmo o MeToo acabou se enchendo dela, resta aos documentar­istas encaminhar as coisas para o lado de Dylan Farrow, para o seu sofrimento, que permanece seja pelo abuso sofrido (supostamen­te ou não) seja porque ninguém ou quase ninguém acredita nela (ou ela assim o sente).

Tudo se trata, enfim, de soprar as cinzas desse caso, trabalhar um pouco o melodramát­ico e induzir o espectador a tomar partido. Vale mais fuxicar sobre os vizinhos ou torcer para A ou Z no BBB.

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David Mcgough/DMI/Time Life Pictures/Getty Images Mia Farrow com o filho Satchel e Woody Allen com Dylan

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