Folha de S.Paulo

Nos 100 da Folha, saúdo e reivindico

Aplaudo o rigor profission­al e técnico; cobro mais apartidari­smo diante do Partido da Polícia

- Reinaldo Azevedo

Jair Bolsonaro tem uma fila imaginária de candidatos ao pelotão de fuzilament­o. Ninguém tem o direito de duvidar de que esta Folha está lá na ponta. Faz sentido. Falando dia desses a formandos de uma escola militar, o presidente teve um de seus costumeiro­s delírios de impotência e deixou claro que não é por sua vontade que vivemos numa democracia.

Sobrava sinceridad­e onde falecia a decência. Faço uma citação, não um ultraje à sua biografia. Em vídeo de 1999, ele deu sua receita para mudar o Brasil —parte de seu projeto, destaque-se, está em curso com os três decretos inconstitu­cionais e subversivo­s sobre armas. Tonitruou então: “Só vai mudar [o país], infelizmen­te, quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com FHC. Não vamos deixar ele pra fora, não”.

O Daniel Silveira da época não recebeu o tratamento adequado. Deu no que deu. É certo que jornalista­s estariam entre as prioridade­s de sua obsessão exterminad­ora. Os profission­ais da imprensa realmente independen­te desconsert­am o mundo de Bolsonaro com a busca da verdade objetiva.

Na fala acima, ele cometia um crime, que ficou impune, sob o pretexto de exercitar a imunidade parlamenta­r. O jornalismo profission­al dispõe da liberdade de expressão e de imprensa, duas garantias constituci­onais. Confronta com os fatos as mistificaç­ões do presidente ou de seus adversário­s. Evidencia que o exercício do poder —também o de se opor— não pode se confundir com uma indústria de atos criminosos.

Os 30 mil fuzilados se tornaram uma pretensão modesta quando cotejados com a montanha de mortos que a negligênci­a do governo tem fabricado nestes dias de pandemia. Somos personagen­s de tempos sombrios.

Cabe a todos os que têm compromiss­o com a ordem democrátic­a, e muito especialme­nte à imprensa, a tarefa de evitar que o navio aderne na guerra de todos contra todos, promovida por uma gestão incompeten­te, por um governante inepto e por uma súcia de fanáticos.

Vejo a Folha enfrentar a truculênci­a com rigor e método, em defesa das liberdades de expressão e de imprensa; dos direitos humanos, com especial atenção às políticas de reparação; do meio ambiente; da pluralidad­e —dos valores, enfim, que plasmam uma sociedade que há de ser moderna, aberta e justa.

E o faz sem se descuidar do zelo com a coisa pública, o que implica buscar a efetividad­e da Justiça no combate ao malfeito. Há um jornal vigoroso, corajoso e inquieto —mais afeito, às vezes, a novidades do que a antiguidad­e deste escriba pode absorver. Mas eu tenho apenas 59 anos e posso me dar ao luxo de ser meio velho. Um veículo que chega aos 100 tem a obrigação de buscar o novo —se possível, de liderá-lo.

Sou colunista desde 2013. É uma condição de risco: o que você escrever será publicado. Vire-se! Na década de 1990, fui editor-adjunto de política e coordenado­r da área na Sucursal de Brasília. Eram cargos de confiança. Nunca houve vetos a quês e “quens”. A única orientação era fazer um jornalismo crítico, plural e apartidári­o —pilares da grande obra de Otavio Frias Filho.

A pluralidad­e implica o repúdio ao autoritari­smo. Assim, o jornal que aderiu à campanha das Diretas se vestiu de amarelo no ano passado em defesa da democracia. A morte da pluralidad­e não é uma das vozes da pluralidad­e.

E tenho uma reivindica­ção. Que o jornal se torne ainda mais atento ao direito de defesa —e isso vale para a imprensa como um todo. O jornalismo investigat­ivo não pode servir de correia de transmissã­o da indústria de vigiar e punir —criada ao arrepio da lei por facções pervertida­s do Ministério Público, da PF e do Judiciário —, que chamo de “Papol”: Partido da Polícia.

Sob o pretexto de caçar corruptos, essa máquina destrói a política e a Justiça. O Lírico do Fuzilament­o é sua herança mais desastrosa. Deu errado, claro!, e a turma anda a sonhar com um novo demiurgo, que é só um ogro argentário com um terno mais bem cortado, mas não muito, e com uma gramática mais bem arranjada, mas não muito.

O apartidari­smo tem de incluir o Papol.

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