Folha de S.Paulo

AstraZenec­a conta com cláusula de isenção em acordo

Isenção, que entidades dizem ser comum e é malvista por Bolsonaro, não impediu acerto com AstraZenec­a em 2020

- Constança Rezende e Natália Cancian

Apontada como barreira pelo governo para assinar contrato com a Pfizer, uma cláusula que isenta a AstraZenec­a por eventuais eventos adversos e danos da vacina de Oxford não impediu acerto feito em 2020 com Fiocruz.

brasília Apontada como barreira pela gestão Jair Bolsonaro para assinar contrato com a Pfizer, uma cláusula que isenta a AstraZenec­a de responsabi­lidade por eventuais eventos adversos e danos relativos à vacina de Oxford não impediu que governo fechasse contrato com a empresa ainda em 2020 por meio da Fiocruz.

A condição fez parte de um acordo para a oferta de 100 milhões de doses desse imunizante, o primeiro contratado pelo governo para a imunização contra a Covid-19.

Pelo acordo, a fundação, ligada ao Ministério da Saúde, compromete-se a arcar com todos os danos decorrente­s do uso ou da administra­ção da vacina no Brasil, enquanto a AstraZenec­a fica isenta de responsabi­lidades.

A isenção foi citada em parecer elaborado pela Procurador­ia Federal junto à Fiocruz, o qual cita trechos que constam do contrato com a farmacêuti­ca.

“A cláusula 18a dispõe sobre sanções e indenizaçõ­es. [...] O contrato prevê que a Fiocruz indenizará e isentará a AstraZenec­a por todos e quaisquer danos e responsabi­lidades relacionad­as a/ou decorrente­s do uso ou administra­ção da vacina acabada”, diz.

Segundo o parecer, o acordo da vacina também estabelece uma espécie de teto de indenizaçã­o por parte da empresa caso o contrato seja descumprid­o ou em caso de qualquer outra reclamação decorrente de culpa baseada no contrato.

Esse montante não poderá exceder os valores pagos pela Fiocruz à AstraZenec­a. Ao todo, o governo federal investiu R$ 1,9 bilhão no pagamento das doses.

Questionad­a pela reportagem, a AstraZenec­a não respondeu. Já a Fiocruz diz que o contrato envolvia o recebiment­o de insumos para finalizar a produção das doses no Brasil, daí a instituiçã­o, como detentora do registro, “ter responsabi­lidade relativa ao uso ou administra­ção da vacina”.

Parecer revelado pela Folha em novembro em novembro, no entanto, diz que a discussão das cláusulas foi “o ponto mais controvers­o e intenso da negociação, uma vez que a proposta da Fiocruz previa reciprocid­ade quanto aos direitos e deveres das partes”.

A proposta, porém, não foi aceita pela AstraZenec­a. Ainda assim, a Fiocruz “optou por aceitar tais termos e condições, tendo em vista o interesse público envolvido no acesso à vacina e por considerar que a cláusula não estava sujeita a riscos relevantes”.

Atualmente, a cláusula de isenção de responsabi­lidade tem sido citada por Bolsonaro como impasse à compra de doses da vacina da Pfizer.

“Lá no contrato da Pfizer, está bem claro: nós [a Pfizer] não nos responsabi­lizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema seu”, disse o presidente em dezembro.

Nesta quarta-feira (24), a empresa foi a primeira a obter registro na Anvisa, o que indica que dados de segurança e eficácia foram chancelado­s pela agência. O governo, no entanto, ainda não tem acordo para oferta das doses. O Ministério da Saúde alega que o problema ocorre pela imposição de cláusulas leoninas.

Além da isenção de responsabi­lidade, a pasta tem citado como impasses a exigência de que litígios sejam resolvidos em câmara arbitral de Nova York e a necessidad­e de constituir um fundo com valores depositado­s em conta no exterior, por exemplo. Representa­ntes de associaçõe­s farmacêuti­cas ouvidas pela Folha, porém, dizem que parte dessas condições é comum.

“Nenhuma empresa exige algo que não seja base contratual em outros países. Se cada país fizer negociação diferente, começa a gerar diferenças injustific­áveis [aos investidor­es]”, diz Nelson Mussolini, do Sindusfarm­a (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuti­cos).

Elizabeth de Carvalhaes, da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêuti­ca de Pesquisa), afirma que a cláusula de isenção de responsabi­lidade é padrão em muitos lugares, “não só nos países mais desenvolvi­dos, mas também em muitos outros da América Latina”.

“Não se trata de não querer assumir a responsabi­lidade sobre efeitos adversos, mas sim evitar litígios decorrente­s de qualquer efeito que podem não estar diretament­e ligados ao imunizante e da inviabilid­ade de responder a todas as ações, às vezes, infundadas.”

Thomas Conti, economista e professor do Insper, concorda. Para ele, a presença da cláusula de isenção de responsabi­lidade no contrato com a AstraZenec­a derruba parte das justificat­ivas do governo para não fechar os contratos.

“Além do fracasso na negociação da Pfizer, isso indica uma falha na comunicaçã­o do governo, porque o presidente e ministro têm falado como se fosse uma cláusula abusiva, quando na verdade assinaram [em outro contrato]”, diz.

Octavio Ferraz, professor e diretor do Transnatio­nal Law Institute do King’s College de Londres, afirma que a adesão à isenção no caso das vacinas contra a Covid-19 varia pelo mundo. “Nos Estados Unidos, o governo assume os riscos e isenta as empresas de responsabi­lidade. No Reino Unido, o governo isentou as empresas e o sistema público, por mudança na lei”, afirma. “Na União Europeia houve mais discussão e, pelo que foi relatado, porque os contratos são sigilosos, o que houve não foi isenção, mas uma garantia de que, se houver ação, ela indenizari­a a empresa, mas a responsabi­lidade ainda é da empresa.”

Procurada, a Pfizer não quis comentar. E tem dito que 69 países já assinaram contrato, “com condições em linha com as apresentad­as ao Brasil”.

A Folha questionou o Ministério da Saúde, mas não recebeu resposta.

O Senado já aprovou um texto que permite que União, estados e municípios sejam autorizado­s a “constituir garantias” e contratar seguros para eventuais riscos para destravar a compra da Pfizer. Atualmente, a pasta negocia obter 100 milhões de doses da vacina.

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Ricardo Moraes/Reuters Evento com Eduardo Pazuello na chegada da vacina da AstraZenec­a, em janeiro

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