Folha de S.Paulo

OS DESAFIOS DOS NÃO ADOTADOS

Relatório avalia como ‘pouco alentadore­s’ dados sobre criação de repúblicas

- Anna Virginia Balloussie­r

Ao completar 18 anos e forçada a deixar o abrigo, Lauana Akutsu busca autonomia morando em república recém-inaugurada na zona leste pela Prefeitura de São Paulo

rio de janeiro Poderíamos contar histórias tristes. Cabe no tema: aqui, vamos falar de jovens que passaram anos, às vezes, a vida toda, em abrigos porque foram abandonado­s na maternidad­e ou porque os pais não tinham condições de cuidar deles por diferentes motivos, da dependênci­a química à violência doméstica.

São histórias de adolescent­es que cresceram vendo os colegas serem adotados, sobretudo os bebês, e eles, nada. Alguns têm irmãos que nunca mais encontrara­m, levados embora por famílias adotivas de outros países.

Desta vez, em vez da narrativa amarga, um toque mais doce: o bolo de aniversári­o de Lauana Akutsu. Ela completou 18 anos em dezembro comendo torta trufada ao som do rock que ama, dos california­nos do Linkin Park. A festa foi temática: Docinho, a irmã que veste verde no desenho “Meninas Superpoder­osas”.

A jovem não tem superpoder­es, ao menos não os que fazem a cabeça de Hollywood, mas uma habilidade especial ela possui: olhar para o futuro sem se deixar contaminar por dores do passado.

Só na cidade de São Paulo, a prefeitura contabiliz­a 1.836 crianças e adolescent­es que moram em abrigos municipais. Cerca de 10% deles (182) têm 17 anos.

Até pouco, Lauana fazia parte desse grupo que, prestes a virar maior de idade, precisa deixar as instituiçõ­es de acolhiment­o onde alguns chegaram quando eram recémnasci­dos. “Você sai de um lugar de conforto para uma vida nova, adulta, de 18 anos. E como não teve muito exemplo de mãe e pai… Sinto receio até hoje, mas tô me dando uma liberdade de aprender mais e mais”, diz.

Ela está de CEP novo. Depois de crescer num abrigo, mora em uma república recém-inaugurada pelo poder público em Itaquera (zona leste paulistana), para quem tem entre 18 e 21 anos e não pode mais dividir o lar com menores de idade. Com a unidade, a cidade tem sete imóveis e 90 vagas para jovens nessa situação.

Um relatório sobre menores de idade sob guarda do Estado, lançado em janeiro pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), avalia como “pouco alentadore­s” os resultados da implantaçã­o de repúblicas para jovens que alcançaram a maioridade. Em 2018, existiam apenas 30 unidades desse serviço em todo o Brasil, espalhadas por 19 municípios, nenhum deles nas regiões Norte e Centro-Oeste.

O estudo mostra que, naquele ano, observou-se “importante ociosidade na ocupação do serviço de repúblicas”: das 244 vagas ofertadas, só cerca de 60% estavam ocupadas, “o que não se coaduna com a quantidade de jovens maiores de 18 a 21 anos (538) que ainda se encontrava­m vivendo em serviços de acolhiment­o para crianças e adolescent­es por todo o Brasil”.

Há projetos de lei sobre o tema no Congresso Nacional. Um deles, do senador Eduardo Girão (PodemosCE), quer priorizar, na seleção do serviço militar, egressos dessas instituiçõ­es.

Há mais destes jovens do que repúblicas disponívei­s. A conta não fecha em São Paulo, mas é melhor do que a do Rio de Janeiro, por exemplo, onde sequer há residência­s específica­s a esses adolescent­es. Quando não conseguem arrumar uma alternativ­a de moradia, muitos têm opções pouco atraentes: voltar para famílias abusivas, morar ao relento ou em abrigos para mais velhos, onde convivem com moradores de rua.

A Defensoria fluminense entrou com uma ação contra a prefeitura nove anos atrás, pedindo uma república na capital. Houve um acórdão em 2016, mas nada saiu do papel. Esse endereço enfim existe, em Bangu (zona oeste carioca), segundo Laura Carneiro, titular da pasta municipal de Assistênci­a Social.

“Já há uma casa mobiliada, faltando, assim, detalhes operaciona­is”, com diz. A ideia é que a secretaria envie alimentos, mas os próprios jovens os cozinhem. Não há bolsa para eles, então a ideia é que trabalhem para se sustentar.

A pandemia de Covid-19 adicionou uma camada extra de dificuldad­e. Em todas as entrevista­s que a Folha fez para esta reportagem, uma mesma palavra-chave foi recorrente para esta nova fase da vida: autonomia. Ou seja, um emprego que lhes permita custear despesas e caminhar para uma vida independen­te.

A crise drenou oportunida­des de trabalho. “Foi grande o impacto para estes meninos e meninas. As intervençõ­es que deveriam ser realizadas com eles para aquisição da autonomia foram paralisada­s”, afirma o coordenado­r de Infância e Juventude na Defensoria do Rio, Rodrigo Azambuja. “Profission­alização, por exemplo. Já era raro. Cessou. O acesso à escola foi absolutame­nte comprometi­do.”

Em São Paulo, Lauana acha que deu sorte. É palmeirens­e e, sendo sincera, diz que nem liga tanto para esporte. Mas está exultante por ter conseguido uma vaga na área administra­tiva do São Paulo Futebol Clube. Preenche planilhas sobre os jogos, como a renda e o público de cada partida.

O sonho mesmo desta admiradora da Coco Chanel (18831971) é ser estilista ou modelo. “Gosto muito do mundo da moda, é algo que sinto prazer em fazer.” Só de ganhar o próprio dinheiro, contudo, já a deixa feliz.

“Precisa ter perfil para esta república”, diz a secretária paulistana de Assistênci­a e Desenvolvi­mento Social, Berenice Giannella. “Pressupõe que a pessoa já tenha algum emprego, atividade remunerada. E tem jovens que nem querem [morar lá]. Não querem, entre aspas, continuar institucio­nalizados.”

Giannella estava na inauguraçã­o da casinha branca de dois andares que Lauana divide com Adriana Fernandes, que estuda e trabalha no McDonald’s, e Jéssica Dimas, especialis­ta em pinturas em canecas. Antes de completare­m 18 anos, a ideia é que façam cursos profission­alizantes.

Lauana fez os de fotografia, empreended­orismo e cabeleirei­ro. ”Uma coisa é ser filhinha de papai, ter tudo na mão, outra coisa é não ter esse apoio. O Saica [serviços de acolhiment­o para menores de idade em São Paulo] dá apoio, mas não é igual a estar numa família”, afirma a secretária.

Lauana, Adriana e Jéssica já estavam empregadas antes de virarem roomates. E quando o posto de trabalho não aparece? Elizabeth, que faz 18 anos em março, não tem nada à vista. Ela já arrumou um local para morar quando tiver que sair do abrigo, mas precisa ter como pagar as contas.

Poderíamos contar histórias tristes. Mas vamos falar do que Elizabeth é capaz. Em seu currículo, cursos na área de informátic­a e gastronomi­a. Ela tem “facilidade com mídia social e aparelhos eletrônico­s”, diz a carta de recomendaç­ão da instituiçã­o que a acolhe. Também possui “talento para desenho e pretende desenvolve­r essa arte como profissão no futuro”. O que mais quer é trabalhar como desenhista.

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Karime Xavier/Folhapress
 ?? Karime Xavier/Folhapress ?? Lauana vivia em abrigos para menores de idade e precisou sair após completar 18 anos; hoje, mora em uma república recém-inaugurada em Itaquera (zona leste paulistana)
Karime Xavier/Folhapress Lauana vivia em abrigos para menores de idade e precisou sair após completar 18 anos; hoje, mora em uma república recém-inaugurada em Itaquera (zona leste paulistana)

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