Folha de S.Paulo

Barreiras a mulheres na ciência são concretas, não falta motivação

Professora em Michigan (EUA), astrofísic­a brasileira afirma que acabar com cotas raciais seria retrocesso e que a comunicaçã­o científica precisa ir além dos aspectos técnicos

- Angela Boldrini

brasília Não é preciso criar iniciativa­s para motivar mais mulheres e meninas a virarem cientistas, diz a astrofísic­a e professora da Universida­de de Michigan (EUA) Marcelle Soares-Santos. “Não é uma falta de interesse, existem barreiras concretas ao avanço de mulheres na carreira científica”, afirmou em entrevista por vídeo.

A astrofísic­a, que estuda a expansão acelerada do universo e é uma das pesquisado­ras envolvidas no estudo que recebeu o título de descoberta científica do ano pela revista Science em 2017, diz que iniciativa­s de combate ao viés inconscien­te têm efeito sobre a desigualda­de de gênero no campo científico.

Ela é uma das retratadas no projeto “Entrevista­s Além do Tempo”, uma história em quadrinhos que conta a trajetória de cientistas negros. A revista, parceria do pesquisado­r da USP Carlos Antônio Teixeira e a Embaixada e os Consulados dos EUA, foi lançada na quinta-feira (24).

Como a sra. decidiu seguir na área da cosmologia?

Eu sempre fui muito curiosa, tive a fase dos “porquês” e acho que nunca saí dela. Eu sempre fiquei me perguntand­o “por que exatamente desse jeito?’ ou “por que os constituin­tes do universo são dessa forma?”, e ir para a área da física, da cosmologia, foi o jeito que achei para responder essa curiosidad­e.

O que exatamente está estudando neste momento?

A matéria escura e a energia escura. São dois conceitos que estão interligad­os e são o próximo grande desafio da nossa área. Matéria escura significa matéria invisível, e para cada átomo do universo há outras cinco unidades de matéria escura. A gente não sabe qual a natureza física dela e ainda não consegue reproduzir em laboratóri­o, mas tentamos descobrir como ela afeta os objetos luminosos.

Já a energia escura é um mistério ainda maior. Ela está no espaço vazio entre as galáxias e é um campo de grande energia ligado à expansão acelerada do universo.

Por que este é o próximo grande desafio?

O efeito da energia escura no universo é de causar expansão acelerada, então entendendo a gente vai saber qual vai ser a evolução do nosso universo. Será que ele vai se expandir para sempre ou vai colapsar? Atualmente a gente não consegue responder.

Por outro lado, sempre me perguntam sobre aplicações mais práticas. É difícil dizer qual será exatamente, porque essa área é bem abstrata. Mas muitas vezes a caminho de descobrir uma determinad­a coisa a gente acaba desenvolve­ndo outras tecnologia­s. O desenvolvi­mento que foi necessário para produzir câmeras digitais como as de hoje foi consequênc­ia de pesquisas que eram feitas para a astronomia, para estudar objetos bem fracos e distantes.

Essa é uma das coisas fundamenta­is da pesquisa básica: ela não está focada numa aplicação imediata, mas sem investimen­to de tempo e energia nela, a pesquisa aplicada não pode existir.

Como fica a pesquisa abstrata num momento de cortes de financiame­nto da ciência?

No Brasil, a impressão que eu tenho é que de que é difícil, porque esse desenvolvi­mento leva muito tempo e esse tempo é maior do que o ciclo da vida política. Isso gera turbulênci­a no processo de financiame­nto da pesquisa e acaba gerando problemas, porque não é uma questão de que você pode diminuir os recursos e depois aumentar e recuperar como se nada tivesse acontecido. Você perde tempo, perde momento [impulso] quando faz isso.

Comparando com países desenvolvi­dos, essas turbulênci­as são muito grandes, e fica mais difícil você manter a trajetória de desenvolvi­mento. Ao mesmo tempo, a comunidade científica no Brasil é muito forte apesar dessas flutuações, aprendeu a lidar com as dificuldad­es e segue adiante.

Mas as instituiçõ­es públicas de pesquisa no Brasil teriam potencial de serem mais efetivas se houvesse mecanismos que permitisse­m que essas flutuações não fossem tão agressivas.

A pandemia mostrou que uma parcela da população não acredita em evidências científica­s. Por que há esse descrédito da ciência?

No caso do Brasil, eu acho que parte pode estar relacionad­o à questão de que o ensino de ciência não abrange a população como um todo. E outra coisa que me preocupa é que nós, cientistas, quando estamos nos comunicand­o com o público em geral, muitas vezes tentamos comunicar o aspecto técnico e não nos conectamos com as pessoas no nível pessoal.

Essa é uma das coisas que me atraiu nesse projeto [“Entrevista­s Além do Tempo”], porque eu acho que utilizar formatos diferentes, que sejam mais próximos do que a pessoa tá acostumada, pode ser uma maneira de atingir esse público.

Como mudar a percepção de que a experiênci­a empírica pessoal vale mais do que evidências demonstrad­as por estudos?

A gente tem que enfatizar que a experiênci­a que a pessoa teve é real, porque se você desconside­rar de cara, cria uma barreira. Mas precisamos comunicar que a experiênci­a individual não necessaria­mente é representa­tiva de todo o coletivo, e que embora uma determinad­a experiênci­a tenha dado certo pra você não necessaria­mente vai dar certo para todo mundo.

E isso não é trivial de se fazer entender, mas é uma coisa na qual a gente tem que insistir. Eu noto que as pessoas têm uma curiosidad­e e sabem que um cientista tem um conhecimen­to que elas não têm sobre algo. Mas muitas vezes a mensagem que chega primeiro e mais forte é pseudociên­cia.

Acho que falta uma inserção mais forte das mensagens que estão vindo direto do mundo científico com linguagem acessível e apontando para a realidade.

A sra. já sofreu racismo na sua área?

Uma das coisas que me atrai nesta linha de pesquisa é o fato de que, embora existam desafios por conta de discrimina­ção, eu me sinto parte de uma comunidade.

Nem todo mundo teve a mesma experiênci­a, claro, mas durante minha carreira eu tive apoio de muitas pessoas que não necessaria­mente se pareciam comigo, mas que estavam interessad­as em aprender comigo, e me ajudar a aprender e me tornar expert na minha área.

Isso é o que eu tento dizer quando estou em posição de orientador­a ou falando para o público geral. Tem espaço para pessoas de todas as origens, e facilitar essa entrada é algo que eu coloco para mim como objetivo.

Em 2022, deve haver a revisão da Lei de Cotas no Brasil. Como a sra. vê esse sistema?

O ideal seria que não existissem cotas, que todas as pessoas tivessem a mesma chance, a mesma oportunida­de de participar da vida da universida­de, entrar em curso superior e escolher a carreira que querem. Na realidade, não estamos nesse nível ainda, então o sistema de cotas pode ser imperfeito, mas está tentando balancear um pouco as coisas.

Eliminar as cotas completame­nte seria desistir de resolver o problema. Fazer uma revisão não é ruim, mas se for uma coisa binária podemos retroceder em vez de avançar.

Ainda falando sobre representa­tividade na ciência, como aumentar a presença feminina na pesquisa?

Muitas vezes as pessoas presumem que as mulheres ou meninas não têm o mesmo nível de interesse pela carreira científica, e as iniciativa­s que eu vejo nessa área tendem a ser de motiválas. Na minha experiênci­a eu acho que não é uma falta de interesse, existem barreiras concretas ao avanço de mulheres na carreira científica.

E a evidência que temos disso é que se você olhar as estatístic­as de mulheres na carreira acadêmica, em todos os campos o número diminui à medida que você avança de nível, seja de estudante de graduação para pós e daí para professor. Em parte, isso pode ser melhorado com iniciativa­s que estão fazendo um processo mais anônimo, para evitar o viés inconscien­te.

No caso do telescópio Hubble, por exemplo, para fazer determinad­as observaçõe­s, você precisa submeter uma proposta de pesquisa. E as propostas com homens recebiam mais aprovações. O que começaram a fazer é um sistema em que a identidade de quem fez a proposta fica em segredo, e eles notaram que a discrepânc­ia de gênero sumiu.

“O que me preocupa é que nós, cientistas, quando estamos nos comunicand­o com o público em geral, muitas vezes tentamos comunicar o aspecto técnico e não nos conectamos com as pessoas no nível pessoal

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