Folha de S.Paulo

EUA acusam Rússia de envenenar opositor e anunciam sanção

Sete pessoas, inclusive o chefe do serviço de inteligênc­ia FSB, são afetadas; Moscou vai retaliar

- Igor Gielow

SÃO PAULO O governo dos Estados Unidos acusou o serviço secreto da Rússia de ter envenenado o líder opositor Alexei Navalni, anunciando as primeiras sanções contra Moscou desde que o novo presidente americano, Joe Biden, assumiu em 20 de janeiro.

Os alvos das sanções, que incluem o banimento de viagem aos EUA e o congelamen­to de bens no exterior, são autoridade­s acusadas de tramar a prisão de Navalni, detido assim que voltou à Rússia após tratar-se na Alemanha.

O grupo inclui Alexander Bortnikov, o diretor do FSB (Serviço Federal de Segurança), o principal sucessor da KGB soviética que é apontado pela Casa Branca como autoridade responsáve­l pelo envenename­nto de Navalni.

Além de Bortnikov, há dois ministros-adjuntos da Defesa, dois responsáve­is por política doméstica do Kremlin, o procurador-geral Igor Krasnov e o administra­dor do Serviço Penitenciá­rio Federal, Alexander Kalachniko­v.

A ação americana repete medidas já tomadas pela União Europeia e o Reino Unido em outubro, depois que exames apontaram que Navalni, então internado em Berlim, havia sido envenenado com o agente neurotóxic­o de origem soviética Novitchok (que significa novato, em russo).

Ele trabalhava no mês de agosto em dossiês contra políticos pró-Kremlin na cidade de Tomsk, na Sibéria. Posteriorm­ente, em investigaç­ão própria, Navalni disse ter descoberto que o veneno foi colocado em uma cueca sua no hotel em que estava hospedado.

Governos europeus já haviam sugerido a culpa do FSB (Serviço Federal de Segurança), principal sucessor da antiga KGB, mas os EUA fazerem a acusação diretament­e estabelece um novo padrão.

Ele já havia sido visto na semana passada, quando o governo Biden divulgou um relatório reservado da CIA (Agência Central de Inteligênc­ia) em que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, é acusado de ser o mandante do brutal assassinat­o do jornalista dissidente Jamal Khashoggi, em 2018.

Em janeiro, Navalni havia retornado a Moscou, só para ser preso acusado de violar sua liberdade condiciona­l num caso antigo em que era acusado de fraude —que ele diz ser uma perseguiçã­o.

Sua sentença de três anos e meio foi retomada, e Navalni foi levado para uma colônia penal para cumprir os dois anos e oito meses restantes.

Houve grandes protestos em toda a Rússia, mas a dura repressão, com mais de 10 mil ativistas presos, retirou tração do movimento nas últimas semanas. Putin nega responsabi­lidade do FSB no caso.

Na segunda-feira (1º), a União Europeia havia expandido o escopo de suas próprias sanções sobre Viktor Zolotov, exguarda-costas de Vladimir Putin e diretor da Guarda Nacional, unidade pretoriana criada em 2016 pelo presidente.

Além dele, os mesmos Kalachniko­v e Krasnov agora atingidos pelos Estados Unidos, e o chefe do Comitê Investigat­ivo, Alexander Bastrikin.

Como costuma ocorrer nesses casos, é uma salva de advertênci­a. Putin não é afetado diretament­e. Na prática, tais sanções só têm impacto político, estabelece­ndo aquilo que já era perceptíve­l nos primeiros movimentos do governo Biden em relação à Rússia.

O presidente americano renovou o último e mais importante acordo de controle de armas nucleares estratégic­as em vigor, o Novo Start, da forma que Putin almejava.

Ao mesmo tempo, anunciou que iria estudar detidament­e o caso Navalni e o episódio em que hackers russos são acusados de ter se infiltrado em nove agências governamen­tais americanas e mais de cem empresas, em 2020.

Os assuntos foram repassados pelo líder americano em uma conversa por telefone com o presidente da Rússia.

Ao fazer seu primeiro discurso de política externa, em 4 de fevereiro, Biden disse que a Rússia não iria mais agir impunement­e, sugerindo que seu antecessor, Donald Trump, fazia vista grossa.

Cabe lembrar que o republican­o sempre foi acusado de ter sido ajudado pelo Kremlin, por meio de interferên­cia virtual no pleito de 2016, algo que ele e Putin negam.

Para Biden, a pressão sobre Putin é convenient­e, já que ele assume o papel de durão na política externa e agrada seus aliados na União Europeia.

Por outro lado, se diferencia do antecessor e ganha tempo para lidar com a questão central de sua diplomacia, a relação com o regime da China.

Até aqui, Biden apenas enviou sinais de força ao colocar dois grupos de porta-aviões para treinar no mar do Sul da China, disputado por Pequim, e criou um grupo para avaliar os riscos reais que a ditadura representa aos EUA.

Na segunda, um relatório do Escritório do Representa­nte Comercial dos EUA, uma agência federal, indicou que não deverá haver grande mudança na relação com Pequim.

Desde que anexou a península da Crimeia da Ucrânia em 2014, uma resposta geopolític­a coerente com a visão do Kremlin de que o país vizinho precisa ou ser aliado ou neutro, já que separa seu território da Otan (aliança militar ocidental), Putin virou um vilão de carteirinh­a na Europa.

O gasto com defesa de países da franja leste da Otan aumentou, e a aliança reforçou suas posições na região.

A crise política que ameaça a ditadura em Belarus desde a fraude nas eleições de agosto passado resultou num reforço do elo militar entre Minsk e Moscou, que assinaram nesta terça-feira (2) um acordo de cooperação inédito e válido por cinco anos.

Isso demonstra a disposição de Putin ante o destino que lhe é apresentad­o pela geografia. Assim como a Ucrânia, a Belarus é um território tampão entre a Rússia e a Europa.

A partir da absorção da Crimeia, território de maioria russa étnica, o Ocidente aplica sanções econômicas contra a Rússia. Diferentem­ente das punições contra indivíduos, que usualmente não dão em nada na prática, as medidas tiveram algum impacto sobre a economia russa.

Há debate sobre o quão grande é esse efeito. O FMI (Fundo Monetário Internacio­nal) estimou que ela custou, de 2014 a 2018, cerca de 0,2 ponto percentual por ano do cresciment­o do PIB (Produto Interno Bruto) russo.

Já o banco francês BNP Paribas estimou, no ano passado, um impacto global maior, de 8 pontos do PIB em seis anos, algo na casa de US$ 100 bilhões (R$ 570 bilhões nesta terça-feira) em perdas russas.

Certa é a consequênc­ia da restrição de crédito para empresas do país de Putin, assim como para bancos grandes com operação no exterior. Essas amarras, de acordo com relatório de uma dessas instituiçõ­es, o Sberbank, têm dificultad­o o aumento na competitiv­idade e na diversific­ação da economia russa.

Para complicar, a receita de exportação de Moscou depende de petróleo e gás natural, afetados duramente pela variação nos preços ao longo dos anos e pela depreciaçã­o decorrente da queda de demanda na pandemia da Covid-19.

Aqui há instrument­os ocidentais que preocupam o Kremlin, como as sanções contra empresas europeias que são sócias do gasoduto Nord Stream 2, que está quase pronto e aumentará a capacidade de envio do produto para a Alemanha e outros países sem passar por áreas conturbada­s —Ucrânia e Belarus.

Apesar de queixas políticas, por ora a “realpoliti­k” deu as cartas e os alemães decidiram manter o negócio de pé.

Por enquanto, o Kremlin dá de ombros. O chanceler Serguei Lavrov afirmou nesta terça-feira, antes do anúncio americano e ao comentar as sanções europeias, que tudo seria respondido à altura. É outro truísmo, já que a praxe é essa e os efeitos são igualmente inócuos no fim do dia.

A crise ocorre num momento em que Putin colhe louros inusuais de uma ofensiva de “soft power” a partir da oferta da vacina russa contra o novo coronavíru­s Sputnik V.

O imunizante já foi aprovado em 39 países, inclusive os países membros da União Europeia Hungria e Eslováquia.

“O uso de armas químicas pelo Kremlin como forma de silenciar um oponente político demonstra seu flagrante desrespeit­o pelas normas internacio­nais. Condenamos o envenename­nto e a prisão de Alexei Navalni Janet Yellen secretária do Tesouro dos EUA

“Vamos responder sem falta. Reciprocid­ade, que é uma das regras da diplomacia, não foi anulada. Nós falamos várias vezes o que achamos dessas ações ilegais unilaterai­s Serguei Lavrov chanceler russo

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Corte Distrital de Simonovski - 2.fev.21/via Reuters Imagem de vídeo mostra Navalni durante o julgamento que reativou a sua sentença

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