Folha de S.Paulo

Empurrando com a barriga

- Antonio Delfim Netto Economista e ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici). Escreve às quartas

O ambiente em torno da prorrogaçã­o do necessário auxílio emergencia­l e da reorganiza­ção das contas públicas segue confuso. Continuamo­s sem saber quanto, para quem e por quanto tempo o auxílio será pago. É uma incógnita qual o nível mínimo de comprometi­mento do Planalto com um plano ajuste fiscal e o quanto dele o Congresso está disposto a entregar.

Na semana passada foi enfimdivul­gado o relatório da PEC Emergencia­l. Deixou pelo caminho as medidas mais duras, como a possibilid­ade de redução de jornadas e salários, e, com isso, o maior impacto fiscal de curto prazo. Ficaram os mecanismos que regulament­am as condições para o acionament­o dos gatilhos do teto e as vedações a ele associadas: expansão do gasto com pessoal, aumento das remuneraçõ­es, criação de novas despesas obrigatóri­as (e seu reajuste acima da inflação), entre outras.

A PEC também faculta a estados e municípios a adoção das mesmas regras e mecanismos, harmoniza os critérios de despesa com pessoal aos do Tesouro e traz outras medidas de reorganiza­ção do arcabouço fiscal brasileiro.

Há pontos polêmicos, como a extinção dos mínimos constituci­onais da saúde e da educação. Não é novidade que os gestores reclamam da ineficiênc­ia desse engessamen­to orçamentár­io para atender as demandas locais, dadas as suas caracterís­ticas demográfic­as heterogêne­as. Por outro lado, é legítima a preocupaçã­o com a economia política da captura de recursos uma vez extintos os pisos, embora a existência deles nunca tenha sido garantia de resultados minimament­e aceitáveis. A vinculação à receita é ruim e introduz flutuações. Há regras melhores, mas nunca houve muito interesse em torna-las mais eficientes, e tudo vai ficando exatamente como está.

Essa baixa disposição em encontrar um denominado­r comum para tratar dos problemas do Brasil é preocupant­e e desanimado­ra, assim como a pressão por mais gastos sem apontar o reequilíbr­io fiscal dentro de um horizonte razoável.

Adentramos março sem Orçamento e, portanto, sem nele criar espaço para custear pelo menos parte do auxílio e as necessidad­es mais prementes. A PEC, cuja essência está no Congresso desde 2019, pegou de surpresa alguns parlamenta­res, que preferem votar apenas o auxílio e deixar o resto para depois, para aprofundar o debate. Desperdiça­mos tempo precioso no 2º semestre de 2020.

A tempestade perfeita já se forma no horizonte, com a elevação dos juros longos aqui e lá fora. Junte-se a isso as ameaças de intervençõ­es pelo presidente nos preços de mercado e nossa vocação de empurrar os ajustes sempre para depois, temos a receita para o desastre.

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