Folha de S.Paulo

O perigo da solução individual diante de uma tragédia coletiva

Decisões judiciais têm permitido que pacientes passem à frente na fila da UTI

- Daniel Wei Liang Wang Professor de direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e membro do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês

Denúncias de que pessoas receberam indevidame­nte a vacina para Covid-19 antes que chegasse a sua vez na lista de priorizaçã­o começaram praticamen­te junto com a campanha de vacinação. Antes do início da campanha, Judiciário e Ministério Público pediram a reserva de doses a seus membros. Esses casos de “fura-filas da vacina”, tentados ou consumados, tiveram repercussã­o muito negativa na opinião pública.

Acesso desigual a recursos públicos de saúde não é novidade. Não raro, isso é criado pelo próprio Judiciário quando concede a alguns o direito de receber tratamento­s em condições privilegia­das ou que sequer estão disponívei­s para o resto da população —a chamada judicializ­ação da saúde. Não surpreende, portanto, que já haja ação judicial pedindo vacinação imediata de pessoa que não pertence aos grupos que já podem ser imunizados.

Menos notada, mas mais grave, é a subversão pelo Judiciário da ordem de prioridade para vagas de UTI. No Amazonas, o cresciment­o abrupto e acentuado de casos de Covid-19 fez com que a demanda por UTI superasse a disponibil­idade de vagas, gerando filas para internação. Cabe à central de regulação do governo estadual escolher quem priorizar com base em critérios clínicos, protocolos de acesso e disponibil­idade de vagas.

Contudo, decisões judiciais têm permitido que alguns passem à frente na fila. De acordo com dados da Secretaria de Saúde do Amazonas, desde janeiro deste ano mais de 200 pacientes já pediram na Justiça internação imediata em UTI. Isso é mais da metade de todos os leitos de terapia intensiva para Covid-19 existentes no estado. Quase todos os pedidos foram concedidos com fundamento no direito à saúde dos autores das ações.

Aqueles que possuem uma ordem judicial a seu favor acabam ocupando a vaga de outros que, pela condição clínica, deveriam receber cuidados intensivos antes. Juízes, acreditand­o defender o direito à saúde de alguns, acabam violando o mesmo direito daqueles empurrados para o fim da fila. E, se critérios clínicos e regulatóri­os são desrespeit­ados, o recurso provavelme­nte não é usado da forma mais eficiente para salvar o maior número possível de vidas.

A resistênci­a da população a medidas mais duras de distanciam­ento social e as cepas mais agressivas do vírus aumentam o risco de colapso do sistema hospitalar em mais lugares. Portanto, é possível que logo surjam mais ações judiciais dessa natureza.

É angustiant­e saber que há pessoas sem acesso imediato a UTIs e vacinas —e que uma melhor gestão da pandemia pelo governo atenuaria o problema. Porém, a concessão de pedidos individuai­s pelo Judiciário, mesmo que movido por intenções nobres, não resolve o problema coletivo e ainda gera desigualda­de, ineficiênc­ia e solapa a ideia de solidaried­ade.

Em um contexto de escassez, prioridade­s devem ser eleitas com base em critérios justos e racionais aplicados a todos de forma consistent­e, sem privilégio nem discrimina­ção. O Judiciário deve cuidar para que isso seja observado tanto pelo sistema de saúde quanto pelas suas próprias decisões.

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Aqueles que possuem uma ordem judicial a seu favor acabam ocupando a vaga de outros que, pela condição clínica, deveriam receber cuidados intensivos antes. Juízes, acreditand­o defender o direito à saúde de alguns, acabam violando o mesmo direito daqueles empurrados para o fim da fila

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