Folha de S.Paulo

Manifesto alarmista

Para desbolsona­rizar o futuro, nada é mais arriscado que o compasso de espera

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

Há presidente­s que governam por decreto. Outros, por iniciativa legislativ­a, emendas constituci­onais, tudo isso combinado e mais um pouco. Jair Bolsonaro governa por crimes comuns e de responsabi­lidade, na ação e na omissão. Sua insubordin­ação performáti­ca à lei, ao decoro e à civilidade sempre foi tratada como caricata. Na Presidênci­a, rotinizou a agressão à liberdade, à vida e à soberania. Durante a pandemia, a técnica se fez mortífera em massa.

Diante da ameaça que se materializ­a, para começar, em 260 mil mortes (em parte evitáveis), o alarmismo resta como única postura realista e racional frente aos fatos. Em nome da honestidad­e, o alarmismo torna-se demanda ética e chamado pragmático de sobrevivên­cia.

O alarmismo pode vir para o bem e para o mal. Pode ofuscar o problema, explodir pontes, produzir pânico, ruído e ação ineficaz. Soar o alarme quando o perigo não existe cobra seu preço. Na história, soar o alarme cinicament­e contra os inimigos imaginário­s levou a golpes, intervençõ­es militares, fúrias redentoras e lavajatist­as ou a recusas da vacina chinesa.

A vocação antialarmi­sta, quando fatos desaconsel­ham, também tem custo. Alertava-se, por exemplo, contra os alarmistas dos anos 30. Quando Churchill fez discurso assustado diante da anexação da Áustria, em 1938, um conservado­r de cachimbo tranquiliz­ou os espíritos: “Ele gosta de sacudir a espada, mas você tem que tratálo com um grão de sal”.

O pacto antialarmi­sta vigente, sem nenhum grão de sal, neutralizo­u a possibilid­ade de entender o Brasil de hoje e imaginar o Brasil que se avizinha. A esse pacto já se reagiu com mais de 70 pedidos de impeachmen­t, representa­ções criminais, ações judiciais, denúncias internacio­nais, furos jornalísti­cos, gritos incrédulos pelos hospitais do país.

Para contar essa história com o devido senso de urgência, esboço aqui um manifesto alarmista. Não é contribuiç­ão à literatura distópica, mas crônica realista em pelo menos seis postulados.

1) “O negacionis­mo mata, a complacênc­ia anestesia.” Na enciclopéd­ia do negacionis­mo brasileiro, não há risco à democracia, nem ameaça sanitária, aqueciment­o climático, racismo, homofobia, corrupção e violência policial. O ilusionism­o sequestra as emoções primárias e espalha violência. 2) “Bolsonaro se fez inimputáve­l, infalível e irresponsá­vel. Só não é inacreditá­vel.” Bolsonaro não está errando e avisou o que faria. Já estava no seu prontuário, na ficha corrida, nos registros parlamenta­res e na biografia.

3) “A Constituiç­ão está sendo revogada.” A campanha de liquidação de ativos constituci­onais esvazia seus compromiss­os civilizató­rios sem mudar seu texto.

4) “Instituiçõ­es de Estado se rendem, em parte, às tentações colaboraci­onistas e às investidas de cooptação e captura.” Não é só Judiciário e Parlamento. A politizaçã­o de instituiçõ­es de Estado atravessa o Ministério Público, a advocacia de Estado, as profissões militares e um grande edifício de instituiçõ­es de controle dentro do Executivo e políticas públicas.

5) “O mantra ilusionist­a ‘povo armado não será escravizad­o’ pavimenta a república das milícias, não a segurança, muito menos a liberdade.” Armamento e degradação ambiental são as linhas vermelhas de Bolsonaro, pelas quais irá às últimas consequênc­ias. 6) “Democracia não é máquina de contar quem tem mais votos.” Vamos aprendendo na marra o que a filosofia política e a história já tentaram ensinar: não bastam eleições para se ter democracia nem uma turba qualquer para se ter povo. Tampouco precisa de golpe para se implantar ditadura.

O que vem pela frente será pior. Politicame­nte, pior que os últimos 30 anos e pior que os últimos dois anos. Do ponto de vista sanitário, 2021 será pior que 2020. Climaticam­ente, a devastação ambiental contribui para um futuro mais grave que qualquer outro momento da era industrial. As consequênc­ias sociais e econômicas cabe a nós imaginar.

Não há vacina para imunização instantâne­a contra um ethos bolsonaris­ta que sofre mutações e se multiplica. Mas há remédio e terapia para tentarmos desbolsona­rizar o futuro. Nada é mais arriscado que o compasso de espera, como se o jogo fosse o mesmo de antes, nos termos de antes.

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