Saiba como Bolsonaro, ao acusar fraude eleitoral sem provas, mina a democracia
Ataques sistemáticos depreciam o valor do voto, que é a legitimação do sistema democrático
SÃO PAULO E MOGI DAS CRUZES (SP) A despeito dos frequentes ataques de Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral do Brasil e às urnas eletrônicas, não há evidências de que tenham ocorrido fraudes em eleições com uso do equipamento, que emprega diferentes medidas de segurança e de auditoria.
Há especialistas que defendem que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deveria aumentar a transparência do sistema eleitoral e melhorar as possibilidades de auditoria das eleições. O problema, dizem eles, é que o debate técnico e sério acaba ofuscado pela desinformação e mentiras.
“Em um certo sentido, o presidente Jair Bolsonaro, quando diz que houve fraude nas eleições de 2018, de alguma maneira ele está dizendo: ‘o meu mandato, portanto, é ilegítimo, eu não deveria ter sido eleito”, afirma o o cientista político José Álvaro Moisés, que é coordenador do grupo de trabalho sobre a qualidade da democracia no Instituto de Estudos Avançados da USP.
As falas de um presidente da República questionando a segurança das eleições tiram valor do voto?
Especialistas do direito e da ciência política ouvidos pela Folha concordam que falas que questionam a legitimidade de uma votação, no fim, acabam por colocar em xeque a própria democracia.
“O voto é o princípio básico de qualquer sistema democrático, isso porque a ideia da democracia é construída em cima desse princípio de que a população escolhe seus governantes. E é isso que os torna legítimos. É o voto que dá legitimidade aos Poderes constituídos”, diz a cientista política e professora da Unicamp Andréa Freitas.
Portanto, se o sistema de votação é colocado em dúvida, junto com ele entram em descrédito o poder do eleitor ao votar e, por consequência, a democracia.
“Em um país em que a maioria da população é analfabeta politicamente e não acredita na importância do voto, as falas do presidente Bolsonaro aumentam ainda mais a desconfiança contra o principal instrumento da democracia”, afirma a cientista política Joyce Luz, que é doutoranda pela USP e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP). “Um dos instrumentos para o povo exercer a democracia é através do voto. A partir do momento em que você tem um representante político destruindo essa imagem do voto, você tem um ataque à democracia e um ataque ao povo.”
Qual a importância do uso da urna eletrônica no país?
Parte dos especialistas vê na urna eletrônica um avanço no sentido de diminuir a chance de ocorrência de fraude, ao diminuir o contato e o risco de interferência humana na contagem dos votos.
Outro aspecto destacado é que o sigilo do voto ficaria garantido, pois, ao votar, é proibido que o eleitor esteja acompanhado de outra pessoa ou que tire fotos da urna.
“Aqui no Brasil temos outros problemas, como o voto de cabresto. A gente já tem pessoas que trocam o voto por dinheiro, cesta básica ou outros favores, mas ainda assim a única segurança é a palavra do eleitor. O comprador do voto precisa confiar na palavra do eleitor, o que de certa forma garante a segurança e integridade física desse eleitor. Se esse eleitor quiser mentir, ele pode, porque não tem nada que precise entregar para comprovar”, afirmou Andréa.
Há casos de fraudes em votações com uso da urna no Brasil? De que forma o voto é auditado?
Um dos principais pontos levantados por grupos que criticam o sistema atual é a questão da auditabilidade dos votos, ou seja, como um terceiro pode conferir que o resultado das eleições divulgado pelo TSE de fato corresponde aos votos dos eleitores.
Nesse sentido, o TSE sustenta que hoje já há diferentes possibilidades de auditoria, com participação de grupos externos. O tribunal diz ainda que todas as suspeitas ou denúncias de fraudes já feitas foram investigadas e nada foi comprovado.
Segundo Volgane Oliveira Carvalho, analista judiciário do TRE-MA, diversas perícias com participação de entidades externas e independentes foram realizadas e não foram identificadas fraudes.
“Eu não nego que tenha existido fraude em grande parte da nossa história eleitoral, mas a urna eletrônica surgiu em grande parte para debelar essas fraudes. E nesses quase 25 anos de experiência de votação eletrônica, não temos nenhuma evidência concreta, científica, segura de que esse sistema possa ou tenha sido fraudado.”
Por outro lado, Diego Aranha, que atualmente é professor associado da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e que pesquisa votação eletrônica, acredita que o debate no geral não deveria estar tão focado nas fraudes.
“Me preocupa a obsessão com fraudes no debate, quando a questão da transparência é muito mais importante, até porque transparência é requisito fundamental para também se investigar fraudes”, disse.
A urna eletrônica é segura? Há riscos no uso desse sistema?
Há uma série de dispositivos e medidas de segurança que são adotados pelo TSE. No entanto, quando se fala em sistemas informatizados é consenso entre os especialistas da área que nenhum sistema é 100% seguro.
Como a tecnologia está sempre sendo renovada, é como se fosse uma relação de gato e rato: quando uma falha é identificada e corrigida, quem busca atacar procura novas estratégias. Isso exige uma melhoria constante.
As urnas eletrônicas foram usadas pela primeira vez em 1996, apenas em alguns municípios. Sua estreia em todo o país aconteceu nas eleições do ano 2000.
De lá para cá, diversas alterações e melhorias foram feitas para aumentar sua segurança. Parte delas foram identificadas nos “Testes Públicos de Segurança”, ocasião em que especialistas tentam hackear o equipamento e apresentam as falhas encontradas para o TSE corrigir.
Uma das pessoas que participou deste processo ao longo dos anos é Diego Aranha. Para ele, o sistema eleitoral brasileiro ainda precisa avançar no tópico transparência. Um dos itens seria a abertura do código-fonte para qualquer pessoa.
Atualmente, ele fica disponível por seis meses, antes da eleição, para inspeção de partidos e de especialistas.
O código-fonte da urna é o conjunto de letras e símbolos que dizem ao sistema como ele deve funcionar, é uma espécie de manual da urna. A gravação desse código em cartões e a instalação deles nas máquinas de votar são feitas em cerimônias públicas, que podem ser acompanhadas por qualquer cidadão.
Em nota à Folha, o TSE afirmou que “estuda ampliar ainda mais o acesso ao códigofonte para as eleições de 2022, dando ainda mais transparência ao processo eleitoral, sem colocar em risco a segurança das informações”.
No processo, as urnas são lacradas. Com isso, uma adulteração —seja acoplando um aparelho externo a ela ou modificando seus cartões de memória— não poderia ser feita sem a violação do lacre, o que revelaria a tentativa de fraude. Caso um lacre esteja violado, um juiz eleitoral analisa a situação e pode até anular os votos da seção.
Heloisa Fernandes Câmara, professora na UFPR e doutora em direito do Estado, considera bastante preocupante que a credibilidade do voto eletrônico seja colocada em xeque sem que haja qualquer embasamento sólido.
“Acho que é saudável nós questionarmos se a urna eletrônica é boa o suficiente, se poderia melhorar, se teve eventualmente algum problema em alguma eleição”, afirma ela.
“Isso faz parte da democracia: questiona-se sempre para ter uma melhoria. Outra coisa é sem apresentar provas já começar um processo de desacreditar que justificaria uma eventual derrota, colocar em questionamento a própria eleição e me parece que esse movimento tem acontecido.”
Para Aranha, as falas irresponsáveis do presidente acabam polarizando o debate “de maneira desproporcional e talvez irrecuperável”.
“Esses comentários lamentáveis esvaziam também as tentativas legítimas da comunidade técnica em conduzir um debate apartidário e informado, de forma que o tema se tornou praticamente impossível de ser debatido no país em meio à quantidade de desinformação circulante”, afirmou.
Bolsonaro defende a impressão de comprovantes da votação entregues a cada eleitor. Esse sistema é viável? Quais as possíveis consequências?
Um dos artigos da minirreforma eleitoral de 2015 previa a obrigatoriedade de impressão do registro em papel de cada voto realizado na urna eletrônica.
Segundo o projeto, o eleitor teria que confirmar que seu voto eletrônico correspondia ao registrado no comprovante impresso, exibido em local lacrado, e que então seria depositado em uma urna de maneira automática.
Entre os problemas elencados por críticos à proposta está que pessoas analfabetas ou cegas não teriam como conferir o comprovante impresso, apenas pedindo ajuda de uma terceira pessoa.
Outro questionamento é o que ocorreria se uma pessoa intencionalmente disser que o voto impresso difere do que ela digitou, mesmo que esteja correto.
Carla Panza Bretas, que é analista judiciária, mestre em direito e autora do livro “Urna eletrônica e (des)confiança no processo eleitoral”, também aponta riscos ao processo em caso de a impressora travar obrigando o mesário a abrir a urna para, por exemplo, tirar um papel engasgado.
“Quando isso ocorre, a urna que está recebendo os votos de papel foi manipulada por um homem, só por isso já fragilizou o processo. A urna vai deixar de estar lacrada”, argumenta ela.
Aranha admite que há obstáculos práticos para a adoção de um comprovante impresso para conferência, mas, de acordo com ele, nenhum desses problemas é intransponível e experiências internacionais na Índia e nos EUA demonstrariam que parte desses pontos poderia ser resolvida.
Por que o Supremo declarou a inconstitucionalidade da impressão do comprovante de votação?
O artigo sobre voto impresso da minirreforma eleitoral foi declarado inconstitucional pelo STF. A corte considerou que a proposta violaria o sigilo do voto.
Antes disso, o tribunal já tinha se manifestado sobre uma outra proposta semelhante, a lei 12.034/2009, também declarando sua inconstitucionalidade.
Em 2019, uma nova proposta foi apresentada no Congresso. A PEC 135/2019, de autoria da deputada Bia Kicis (PSLDF), cujo andamento depende do comando da Câmara dos Deputados, presidida por Arthur Lira (PP-AL) —candidato que foi eleito com apoio de Bolsonaro.
“Ovotoéo princípio básico de qualquer sistema democrático, isso porque a ideia da democracia é construída em cima desse princípio de que a população escolhe seus governantes. É o voto que dá legitimidade aos Poderes constituídos Andréa Freitas cientista política e professora da Unicamp
“A partir do momento em que você tem um representante político destruindo essa imagem do voto, você tem um ataque à democracia e um ataque ao povo Joyce Luz cientista política e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de SP
“É saudável questionarmos se a urna eletrônica éboao suficiente, se poderia melhorar, se teve eventualmente algum problema em alguma eleição. Isso faz parte da democracia: questiona-se sempre para ter uma melhoria. Outra coisa é, sem apresentar provas, já começar um processo de desacreditar que justificaria uma eventual derrota, colocar em questionamento a própria eleição, e me parece que esse movimento tem acontecido Heloisa Fernandes Câmara doutora em direito do Estado e professora na UFPR