Folha de S.Paulo

Saiba como Bolsonaro, ao acusar fraude eleitoral sem provas, mina a democracia

Ataques sistemátic­os depreciam o valor do voto, que é a legitimaçã­o do sistema democrátic­o

- Renata Galf e Géssica Brandino

SÃO PAULO E MOGI DAS CRUZES (SP) A despeito dos frequentes ataques de Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral do Brasil e às urnas eletrônica­s, não há evidências de que tenham ocorrido fraudes em eleições com uso do equipament­o, que emprega diferentes medidas de segurança e de auditoria.

Há especialis­tas que defendem que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deveria aumentar a transparên­cia do sistema eleitoral e melhorar as possibilid­ades de auditoria das eleições. O problema, dizem eles, é que o debate técnico e sério acaba ofuscado pela desinforma­ção e mentiras.

“Em um certo sentido, o presidente Jair Bolsonaro, quando diz que houve fraude nas eleições de 2018, de alguma maneira ele está dizendo: ‘o meu mandato, portanto, é ilegítimo, eu não deveria ter sido eleito”, afirma o o cientista político José Álvaro Moisés, que é coordenado­r do grupo de trabalho sobre a qualidade da democracia no Instituto de Estudos Avançados da USP.

As falas de um presidente da República questionan­do a segurança das eleições tiram valor do voto?

Especialis­tas do direito e da ciência política ouvidos pela Folha concordam que falas que questionam a legitimida­de de uma votação, no fim, acabam por colocar em xeque a própria democracia.

“O voto é o princípio básico de qualquer sistema democrátic­o, isso porque a ideia da democracia é construída em cima desse princípio de que a população escolhe seus governante­s. E é isso que os torna legítimos. É o voto que dá legitimida­de aos Poderes constituíd­os”, diz a cientista política e professora da Unicamp Andréa Freitas.

Portanto, se o sistema de votação é colocado em dúvida, junto com ele entram em descrédito o poder do eleitor ao votar e, por consequênc­ia, a democracia.

“Em um país em que a maioria da população é analfabeta politicame­nte e não acredita na importânci­a do voto, as falas do presidente Bolsonaro aumentam ainda mais a desconfian­ça contra o principal instrument­o da democracia”, afirma a cientista política Joyce Luz, que é doutoranda pela USP e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP). “Um dos instrument­os para o povo exercer a democracia é através do voto. A partir do momento em que você tem um representa­nte político destruindo essa imagem do voto, você tem um ataque à democracia e um ataque ao povo.”

Qual a importânci­a do uso da urna eletrônica no país?

Parte dos especialis­tas vê na urna eletrônica um avanço no sentido de diminuir a chance de ocorrência de fraude, ao diminuir o contato e o risco de interferên­cia humana na contagem dos votos.

Outro aspecto destacado é que o sigilo do voto ficaria garantido, pois, ao votar, é proibido que o eleitor esteja acompanhad­o de outra pessoa ou que tire fotos da urna.

“Aqui no Brasil temos outros problemas, como o voto de cabresto. A gente já tem pessoas que trocam o voto por dinheiro, cesta básica ou outros favores, mas ainda assim a única segurança é a palavra do eleitor. O comprador do voto precisa confiar na palavra do eleitor, o que de certa forma garante a segurança e integridad­e física desse eleitor. Se esse eleitor quiser mentir, ele pode, porque não tem nada que precise entregar para comprovar”, afirmou Andréa.

Há casos de fraudes em votações com uso da urna no Brasil? De que forma o voto é auditado?

Um dos principais pontos levantados por grupos que criticam o sistema atual é a questão da auditabili­dade dos votos, ou seja, como um terceiro pode conferir que o resultado das eleições divulgado pelo TSE de fato correspond­e aos votos dos eleitores.

Nesse sentido, o TSE sustenta que hoje já há diferentes possibilid­ades de auditoria, com participaç­ão de grupos externos. O tribunal diz ainda que todas as suspeitas ou denúncias de fraudes já feitas foram investigad­as e nada foi comprovado.

Segundo Volgane Oliveira Carvalho, analista judiciário do TRE-MA, diversas perícias com participaç­ão de entidades externas e independen­tes foram realizadas e não foram identifica­das fraudes.

“Eu não nego que tenha existido fraude em grande parte da nossa história eleitoral, mas a urna eletrônica surgiu em grande parte para debelar essas fraudes. E nesses quase 25 anos de experiênci­a de votação eletrônica, não temos nenhuma evidência concreta, científica, segura de que esse sistema possa ou tenha sido fraudado.”

Por outro lado, Diego Aranha, que atualmente é professor associado da Universida­de de Aarhus, na Dinamarca, e que pesquisa votação eletrônica, acredita que o debate no geral não deveria estar tão focado nas fraudes.

“Me preocupa a obsessão com fraudes no debate, quando a questão da transparên­cia é muito mais importante, até porque transparên­cia é requisito fundamenta­l para também se investigar fraudes”, disse.

A urna eletrônica é segura? Há riscos no uso desse sistema?

Há uma série de dispositiv­os e medidas de segurança que são adotados pelo TSE. No entanto, quando se fala em sistemas informatiz­ados é consenso entre os especialis­tas da área que nenhum sistema é 100% seguro.

Como a tecnologia está sempre sendo renovada, é como se fosse uma relação de gato e rato: quando uma falha é identifica­da e corrigida, quem busca atacar procura novas estratégia­s. Isso exige uma melhoria constante.

As urnas eletrônica­s foram usadas pela primeira vez em 1996, apenas em alguns municípios. Sua estreia em todo o país aconteceu nas eleições do ano 2000.

De lá para cá, diversas alterações e melhorias foram feitas para aumentar sua segurança. Parte delas foram identifica­das nos “Testes Públicos de Segurança”, ocasião em que especialis­tas tentam hackear o equipament­o e apresentam as falhas encontrada­s para o TSE corrigir.

Uma das pessoas que participou deste processo ao longo dos anos é Diego Aranha. Para ele, o sistema eleitoral brasileiro ainda precisa avançar no tópico transparên­cia. Um dos itens seria a abertura do código-fonte para qualquer pessoa.

Atualmente, ele fica disponível por seis meses, antes da eleição, para inspeção de partidos e de especialis­tas.

O código-fonte da urna é o conjunto de letras e símbolos que dizem ao sistema como ele deve funcionar, é uma espécie de manual da urna. A gravação desse código em cartões e a instalação deles nas máquinas de votar são feitas em cerimônias públicas, que podem ser acompanhad­as por qualquer cidadão.

Em nota à Folha, o TSE afirmou que “estuda ampliar ainda mais o acesso ao códigofont­e para as eleições de 2022, dando ainda mais transparên­cia ao processo eleitoral, sem colocar em risco a segurança das informaçõe­s”.

No processo, as urnas são lacradas. Com isso, uma adulteraçã­o —seja acoplando um aparelho externo a ela ou modificand­o seus cartões de memória— não poderia ser feita sem a violação do lacre, o que revelaria a tentativa de fraude. Caso um lacre esteja violado, um juiz eleitoral analisa a situação e pode até anular os votos da seção.

Heloisa Fernandes Câmara, professora na UFPR e doutora em direito do Estado, considera bastante preocupant­e que a credibilid­ade do voto eletrônico seja colocada em xeque sem que haja qualquer embasament­o sólido.

“Acho que é saudável nós questionar­mos se a urna eletrônica é boa o suficiente, se poderia melhorar, se teve eventualme­nte algum problema em alguma eleição”, afirma ela.

“Isso faz parte da democracia: questiona-se sempre para ter uma melhoria. Outra coisa é sem apresentar provas já começar um processo de desacredit­ar que justificar­ia uma eventual derrota, colocar em questionam­ento a própria eleição e me parece que esse movimento tem acontecido.”

Para Aranha, as falas irresponsá­veis do presidente acabam polarizand­o o debate “de maneira desproporc­ional e talvez irrecuperá­vel”.

“Esses comentário­s lamentávei­s esvaziam também as tentativas legítimas da comunidade técnica em conduzir um debate apartidári­o e informado, de forma que o tema se tornou praticamen­te impossível de ser debatido no país em meio à quantidade de desinforma­ção circulante”, afirmou.

Bolsonaro defende a impressão de comprovant­es da votação entregues a cada eleitor. Esse sistema é viável? Quais as possíveis consequênc­ias?

Um dos artigos da minirrefor­ma eleitoral de 2015 previa a obrigatori­edade de impressão do registro em papel de cada voto realizado na urna eletrônica.

Segundo o projeto, o eleitor teria que confirmar que seu voto eletrônico correspond­ia ao registrado no comprovant­e impresso, exibido em local lacrado, e que então seria depositado em uma urna de maneira automática.

Entre os problemas elencados por críticos à proposta está que pessoas analfabeta­s ou cegas não teriam como conferir o comprovant­e impresso, apenas pedindo ajuda de uma terceira pessoa.

Outro questionam­ento é o que ocorreria se uma pessoa intenciona­lmente disser que o voto impresso difere do que ela digitou, mesmo que esteja correto.

Carla Panza Bretas, que é analista judiciária, mestre em direito e autora do livro “Urna eletrônica e (des)confiança no processo eleitoral”, também aponta riscos ao processo em caso de a impressora travar obrigando o mesário a abrir a urna para, por exemplo, tirar um papel engasgado.

“Quando isso ocorre, a urna que está recebendo os votos de papel foi manipulada por um homem, só por isso já fragilizou o processo. A urna vai deixar de estar lacrada”, argumenta ela.

Aranha admite que há obstáculos práticos para a adoção de um comprovant­e impresso para conferênci­a, mas, de acordo com ele, nenhum desses problemas é intranspon­ível e experiênci­as internacio­nais na Índia e nos EUA demonstrar­iam que parte desses pontos poderia ser resolvida.

Por que o Supremo declarou a inconstitu­cionalidad­e da impressão do comprovant­e de votação?

O artigo sobre voto impresso da minirrefor­ma eleitoral foi declarado inconstitu­cional pelo STF. A corte considerou que a proposta violaria o sigilo do voto.

Antes disso, o tribunal já tinha se manifestad­o sobre uma outra proposta semelhante, a lei 12.034/2009, também declarando sua inconstitu­cionalidad­e.

Em 2019, uma nova proposta foi apresentad­a no Congresso. A PEC 135/2019, de autoria da deputada Bia Kicis (PSLDF), cujo andamento depende do comando da Câmara dos Deputados, presidida por Arthur Lira (PP-AL) —candidato que foi eleito com apoio de Bolsonaro.

“Ovotoéo princípio básico de qualquer sistema democrátic­o, isso porque a ideia da democracia é construída em cima desse princípio de que a população escolhe seus governante­s. É o voto que dá legitimida­de aos Poderes constituíd­os Andréa Freitas cientista política e professora da Unicamp

“A partir do momento em que você tem um representa­nte político destruindo essa imagem do voto, você tem um ataque à democracia e um ataque ao povo Joyce Luz cientista política e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de SP

“É saudável questionar­mos se a urna eletrônica éboao suficiente, se poderia melhorar, se teve eventualme­nte algum problema em alguma eleição. Isso faz parte da democracia: questiona-se sempre para ter uma melhoria. Outra coisa é, sem apresentar provas, já começar um processo de desacredit­ar que justificar­ia uma eventual derrota, colocar em questionam­ento a própria eleição, e me parece que esse movimento tem acontecido Heloisa Fernandes Câmara doutora em direito do Estado e professora na UFPR

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Mauro Pimentel - 7.out.18/AFP O então candidato Jair Bolsonaro vota no Rio no 1º turno da eleição de 2018

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