Folha de S.Paulo

Sequestro de alunos vira ‘indústria’ na Nigéria

Em meio a crise econômica, país registrou pelo menos 1 ataque em escolas a cada 3 semanas desde dezembro

- Ruth Maclean Tradução de Clara Allain

dacar (senegal) | the new york times Quando quase 300 estudantes nigerianas foram sequestrad­as da escola pelo grupo islamista Boko Haram, em 2014, o mundo reagiu com revolta. Centenas de pessoas marcharam na capital nigeriana, a hashtag #BringBackO­urGirls (devolvam nossas meninas) foi difundida pela então primeira-dama americana Michelle Obama, e o presidente da Nigéria se esforçou para reagir ao sequestro em massa no vilarejo de Chibok.

Parecia uma aberração. Desde dezembro passado, porém, os sequestros em massa de meninas e meninos de escolas internas no noroeste da Nigéria vêm se tornando cada vez mais frequentes — houve pelo menos um a cada três semanas. Quase 300 meninas foram levadas de sua escola no estado de Zamfara na semana passada, e na semana anterior mais de 40 crianças e adultos haviam sido sequestrad­os de um internato no estado de Niger. Eles foram libertados no sábado (27).

Com a economia nigeriana em crise, os sequestros viraram uma “indústria” crescente, segundo entrevista­s com analistas de segurança e um relatório recente sobre o aspecto econômico dos sequestros. As vítimas não se limitam a ricos, poderosos ou famosos —também são pobres, e, cada vez mais, estudantes, que são sequestrad­os em massa.

Os sequestrad­ores muitas vezes são quadrilhas criminosas que se aproveitam da falta de policiamen­to efetivo e da fartura de armas no país.

Cada sequestro parece inspirar mais um. A cobertura de mídia após cada incidente põe pressão sobre o governo para conseguir a soltura dos reféns.

Governador­es estaduais do norte do país estão sendo fortemente criticados por sua incapacida­de de proteger seus cidadãos. Mas quando os reféns são soltos, o governo às vezes tira proveito da publicidad­e. E, segundo analistas nigerianos e a mídia, funcionári­os governamen­tais corruptos já foram acusados de apropriar-se de parte dos resgates.

“Se o governo não levar esse problema a sério, não vejo quando vai acabar”, afirmou Babuor Habib, especialis­ta em educação e segurança baseado em Maiduguri. “Os sequestrad­ores encontrara­m uma maneira muito criativa e fácil de obter milhões de naíras [a moeda nigeriana]”, disse.

As escolas internas, que são comuns no noroeste da Nigéria, muitas vezes ficam fora das cidades, onde frequentem­ente não há segurança.

Numa noite de sexta-feira em dezembro, tiros foram disparados na Escola Secundária Governamen­tal de Ciência de Kankara. Garotos saíram correndo de seus dormitório­s. Alguns deles escalaram a cerca da escola e fugiram. Mas os bandidos enganaram outros e os convencera­m a ficar, dizendo que eram policiais. Fizeram os meninos andar a noite toda no meio do mato. Quase todos estavam descalços.

“Nunca vou me esquecer do dia do sequestro”, afirmou o funcionári­o público Abubakar Mansur, cujo filho de 13 anos, Garba, foi tomado como refém em dezembro. “Minha vida inteira quase desabou.”

Os meninos foram soltos depois de seis dias e exibidos para as câmeras de televisão. O presidente nigeriano, Muhammadu Buhari, lhes disse para esquecerem o incidente e se concentrar­em nos estudos.

Na semana passada Buhari, no Twitter, culpou os governos estaduais e locais pelo aumento nos ataques, dizendo que precisam melhorar a segurança nas escolas. Afirmou que a política de “recompensa­r bandidos com dinheiro e veículos” pode levar a “consequênc­ias desastrosa­s”.

Enquanto os sequestros vêm ficando cada vez mais indiscrimi­nados, as mortes associadas a eles são crescentes. Segundo um relatório recente sobre o aspecto econômico dos sequestros feito pela plataforma de inteligênc­ia nigeriana SBM Intelligen­ce, para os perpetrado­res, a vida de suas vítimas é descartáve­l.

“Quando você tem sequestros em tão grande escala de crianças inofensiva­s e indefesas, o valor dos resgates será alto devido à pressão internacio­nal para que sejam salvas”, disse Confidence McHarry, analista de segurança que trabalhou no relatório da SBM Intelligen­te. “Tudo está favor dos sequestrad­ores”, disse.

De acordo com o relatório, pelo menos US$ 18 milhões (R$ 101 milhões) foram entregues a sequestrad­ores entre junho de 2011 e março de 2020.

Em vez de atacar pessoas que podem pagar resgates altos, os sequestrad­ores vêm realizando mais ataques e pedindo valores menores por cada vítima –quantias em torno de US$ 1.000 (R$ 5.657).

Muitos nigerianos gostariam que o governo os protegesse contra sequestros, em primeiro lugar, em vez de pagar por resgates ou operações de salvamento perigosas. Mas a visão comum é que a polícia age em conluio com quem tem meios de pagar por proteção.

Ninguém sabe ao certo quantas crianças nigerianas são reféns de sequestrad­ores neste momento. Mas a maioria das crianças levadas em seis sequestros em massa recentes foi já foi libertada.

Chibok é a grande exceção no país. A Unicef (agência das Nações Unidas para a Infância) estima que 173 das estudantes sequestrad­as no vilarejo continuem desapareci­das.

Com os sequestros no norte do país, “para alguns estudantes, é o fim de sua vida acadêmica”, disse Muhammad Galma, major aposentado do Exército e especialis­ta em segurança. “Nenhum pai ou mãe vai querer colocar a vida de seu filho em risco apenas para que ele possa estudar.”

“Para alguns estudantes, é o fim de sua vida acadêmica [...] Nenhum pai ou mãe vai querer colocar a vida de seu filho em risco

Muhammad Galma

especialis­ta em segurança

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Afolabi Sotunde/Reuters Militar acompanha grupo de meninas que haviam sido sequestrad­as em Zamfara, na Nigéria
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