Folha de S.Paulo

Intervençã­o na Petrobras não significa guinada na pauta liberal de Bolsonaro

Presidente da estatal nos governos de Lula e Dilma diz que decisão de trocar o comando da empresa foi estratégia política

- Fábio Zanini

Presidente mais longevo da Petrobras em seus 68 anos de existência, José Sergio Gabrielli, 71, diz que a decisão de Jair Bolsonaro de interferir no comando da estatal foi uma estratégia de sobrevivên­cia política e não necessaria­mente significa um recuo na agenda liberal do governo.

“O principal elemento do programa econômico de Bolsonaro é ultraneoli­beral e contrário à atuação direta do Estado na economia. A resposta [ao reajuste dos combustíve­is] foi muito mais política do que de mudança de trajetória para o que ele quer com a Petrobras”, diz Gabrielli, presidente da estatal durante seis anos e meio entre 2005 e 2012, nos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Hoje ligado ao Ineep (Instituto de Estudos Estratégic­os de Petróleo, Gás Natural e Biocombust­íveis), Gabrielli concorda com a necessidad­e de mudar a política de preços, principal razão pela qual Bolsonaro decidiu trocar o economista liberal Roberto Castello Branco pelo general Joaquim Silva e Luna.

Também faz coro à necessidad­e de que a Petrobras tenha um papel social e não olhe apenas para os acionistas, como disse o próprio general. Isolado em Salvador desde o início da pandemia, ele critica a composição pró-mercado do conselho de administra­ção.

A decisão de Bolsonaro de trocar o comando da Petrobras é uma reviravolt­a na sua política voltada para o mercado?

O principal elemento do programa econômico de Bolsonaro é ultraneoli­beral e contrário à atuação direta do Estado na economia. Toda vez que há pressão de custos que eleva esses preços no plano internacio­nal, a decisão de repassar imediatame­nte ou não essas variações provoca um impacto grande na economia, com grandes efeitos políticos. A resposta de Bolsonaro foi muito mais política do que de mudança de trajetória para o que ele quer com a Petrobras.

Só o fato de ele ter feito esse movimento não sinaliza algo novo?

Depende se a venda de refinarias continuar, se a decisão da ANP [Agência Nacional do Petróleo] e dos órgãos reguladore­s continuar favorecend­o a importação de derivados, se a Petrobras continuar focando o pré-sal. Essas coisas indicariam que é impossível não ter preço internacio­nalizado de gasolina, diesel e querosene de aviação.

Amaneira como Bolsonaro anunciou a demissão causa prejuízo à imagem da empresa?

A presidênci­a da Petrobras não é um cargo nomeado por decreto ou autorizaçã­o presidenci­al. O acionista majoritári­o pode mudar o presidente, mas via conselho. O que ocorreu criou uma tempestade no mercado de ações, mas esse mercado tende a responder exageradam­ente a decisões que afetam as expectativ­as.

Vimos em 2020 um enorme cresciment­o da Bolsa. Houve um enorme afluxo de recursos de pessoas físicas, e grande parte delas comprou ações da Petrobras na expectativ­a de que iria pagar dividendos e dar prioridade aos acionistas.

Esse movimento de Bolsonaro expõe a Petrobras ao risco de ações judiciais?

Sempre existem os fundos abutres, os escritório­s especializ­ados nesse tipo de ação. Toda vez que isso acontece por intervençã­o dos dirigentes a possibilid­ade de ações aumenta. Isso faz parte do negócio.

As primeiras declaraçõe­s do general Silva e Luna foram na linha de que a Petrobras tem que ter sensibilid­ade social. O sr. concorda?

Todas as grandes empresas têm vários grupos de interesse relacionad­os. Evidenteme­nte tem os acionistas, que não são um grupo homogêneo. Mas, se a empresa só olhar para o acionista, não tem sobrevivên­cia a longo prazo.

Tem que olhar também para os fornecedor­es. Tem seus empregados. E tem de se relacionar com seus consumidor­es, olhar para o mercado dela. Além disso, não pode desconside­rar onde se situa. Se a empresa briga muito com a comunidade, se quer romper com o governo, não quer seguir orientaçõe­s da macroecono­mia, não sobrevive a longo prazo.

É claro que os acionistas têm um papel importante, determinan­te, mas que não pode ser exclusivo. É por isso que grandes empresas não gostam de alterar os preços toda hora.

É melhor uma suavização das receitas de longo prazo do que se aproveitar de todos os fluxos do ciclo do preço, de quando o preço sobe você imediatame­nte sobe, e, quando desce, você imediatame­nte desce. Não é assim que funciona nas grandes empresas, incluindo as estatais.

Uma mudança na política de preço não é recolocar a Petrobras no caminho da intervençã­o estatal, com influência política?

A Petrobras teve os maiores lucros de sua história num momento em que não repassava imediatame­nte os preços para o mercado doméstico, no governo Lula.

Há muita mitificaçã­o sobre os preços internacio­nais do petróleo. Eles são definidos não pela oferta e demanda. Para cada barril físico que troca de mãos, dez barris são transacion­ados a mais. Esses nove a mais refletem essencialm­ente a variação dos contratos futuros. Não é somente especulaçã­o, você tem operações de segurança de risco, de diminuir margens e perdas no futuro, de estabiliza­ção. São movimentos financeiro­s.

Como o sr. vê a composição do conselho de administra­ção, com diversos integrante­s ligados ao mercado?

Está desequilib­rado. Praticamen­te só tem representa­nte do mercado financeiro, e particular­mente dos fundos mais especulati­vos. Numa empresa de petróleo, que não está produzindo banana ou uma mercadoria qualquer, mas um produto estratégic­o, que leva a guerras, a orientaçõe­s de segurança nacional por grandes potências, não dá para haver o olhar e a representa­ção só do acionista que está visando o máximo de dividendos do trimestre seguinte.

O sr. citou o governo Lula, mas foi quando a ingerência política provocou o maior escândalo de corrupção da história da empresa, o petrolão. Um retorno a um modelo de governança anterior não arrisca abrir a porta de novo para aquela realidade?

Eu não atribuo necessaria­mente à indicação política a corrupção, porque, se fosse assim, você não teria corrupção no setor privado. E a maior parte dos processos de corrupção ocorre no setor privado. No setor de petróleo, que tem grande margem de renda entre o preço e o custo, os grandes casos de corrupção não foram só com as empresas estatais.

Evidenteme­nte, a corrupção tem de ser combatida, e você tem de estimular o aperfeiçoa­mento e o refinament­o dos sistemas de controle para evitar que exista. Mas ela tem ser combatida punindo os corruptos, e não destruindo as empresas. O que a Lava Jato fez foi destruir empresas e não punir os corruptos.

A blindagem da Petrobras de interferên­cia política não está sob risco com esse movimento do Bolsonaro?

Acho que não. A atitude de Bolsonaro não é sobre corrupção. O que está acontecend­o na Petrobras é que o grau de transparên­cia das decisões diminuiu a partir de 2016, com as novas regulações de governança interna. Hoje, as negociaçõe­s de privatizaç­ão ocorrem exclusivam­ente no âmbito da Petrobras, com fatos relevantes muito sucintos e poucas informaçõe­s para o público.

A interferên­cia de Bolsonaro significa que a privatizaç­ão da Petrobras está descartada?

A BR Distribuid­ora já foi privatizad­a. O único instrument­o que a Petrobras tinha para atuar diretament­e no varejo do gás de cozinha, a Liquigás, foi privatizad­a. A Petrobras está anunciando a venda de oito refinarias. Se vender, você vai perder qualquer possibilid­ade de ter influência na fixação dos preços de mercado, vai entregar metade do sétimo maior mercado mundial de derivados para outras empresas, e vai, na medida em que perde a sinergia e a eficiência do sistema integrado de refino, aumentar o custo sistêmico de produzir derivados no Brasil.

A Petrobras está saindo de todas as atividades, com exceção do filé mignon do présal, e virou uma grande exportador­a de petróleo cru. Do ponto de vista de lógica da grande empresa, a Petrobras já não existe mais. Acho muito difícil voltar à empresa pujante que era.

Em termos gerais, a decisão de Bolsonaro de mexer na Petrobras era necessária?

Bolsonaro sentiu que o risco de uma greve de caminhonei­ros era muito grande. Ele agiu politicame­nte, e não com base numa ideia de mudar radicalmen­te a política econômica —que pode vir a mudar, mas não está garantido.

Bolsonaro tem várias forças que o apoiam. Não são só os caminhonei­ros, não são só os segmentos que pressionam para segurar o preço, mas também os empresário­s, investidor­es da Bolsa, acionistas que querem receber a curto prazo. A política do [Paulo] Guedes é voltada principalm­ente para esses segmentos. Não acho que é possível ainda afirmar que a entrada do general vá significar alteração significat­iva da política de preço.

Não parece óbvio que a troca foi feita para mudar?

Ele vai tentar, vai primeiro sinalizar, na expectativ­a de que os preços internacio­nais vão se estabiliza­r. Mas as indicações não são essas, são que vão continuar subindo, portanto a pressão vai continuar. Se você vende refinarias e continua importando derivados, não há possibilid­ade de não internacio­nalizar preços.

Ou seja, a guinada na mudança de Castello Branco para Silva e Luna não necessaria­mente acontecerá?

Depende. Qual o sinal de que vai mudar? Só porque o general segue as ordens do presidente? É uma hipótese, não tem garantia.

A presidênci­a da Petrobras não é um cargo nomeado por decreto, ou por autorizaçã­o presidenci­al. O acionista majoritári­o pode mudar o presidente, mas via conselho

Se a empresa só olhar para o acionista, não tem sobrevivên­cia a longo prazo. Tem que olhar também para os fornecedor­es. Tem seus empregados. E tem de se relacionar com seus consumidor­es, olhar para o mercado dela

O conselho de administra­ção da Petrobras está desequilib­rado. Praticamen­te só tem representa­nte do mercado financeiro, e particular­mente dos fundos mais especulati­vos

Do ponto de vista de lógica da grande empresa, a Petrobras já não existe mais. Acho muito difícil voltar à empresa pujante que era

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