Bolsonaro propagandeia repasses obrigatórios
30% do que presidente diz ter enviado a estados está na Constituição; Lira anuncia fundo com recursos já existentes
brasília De cada R$ 100 que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) diz ter repassado aos estados em 2020, R$ 30 correspondem a repasses obrigatórios determinados pela Constituição e a programas sociais consolidados antes do surgimento do novo coronavírus, sem relação com o auxílio emergencial criado no contexto da pandemia.
A proporção de repasses que não têm relação com a pandemia é ainda maior e pode chegar a 58% do valor divulgado por Bolsonaro em sua conta no Twitter no domingo (28).
O presidente segue com a estratégia política de confrontar governadores que adotam medidas de distanciamento social na pandemia.
A situação crítica em boa parte dos estados, com esgotamento de leitos de UTI, levou a decretos locais de lockdown ou toques noturnos de recolher, medidas que contam com a oposição de Bolsonaro, um entusiasta das aglomerações e de medicamentos sem eficácia para a Covid-19.
Na tarde de domingo, ele publicou “repasses do governo federal para cada estado só em 2020”, usando transferências diretas nas mais distintas áreas (incluída a de saúde), programas sociais e suspensão de dívidas.
No dia seguinte, 19 governadores —entre eles, tradicionais aliados de Bolsonaro, como Ronaldo Caiado (DEM/ GO), Ratinho Júnior (PSD/PR) e Cláudio Castro (PSC/RJ)— assinaram uma carta em protesto contra o presidente.
Eles afirmaram que o governo federal distorceu informações, fez interpretações equivocadas, atacou governos locais e minou a cooperação que deveria conduzir na pandemia.
Segundo a carta, o presidente incluiu nos dados que divulgou repasses que são obrigatórios, por determinação da Constituição, como fundos de participação, royalties e recursos do SUS.
A Folha fez um levantamento com base nas quatro fontes públicas de informação usadas pelo governo federal no calculo e constatou que 30% do dinheiro era uma obrigação constitucional ou valores necessários para pagar benefícios sociais já consolidados.
Para provocar os estados, o governo federal levou em conta transferências diretas que somam R$ 180,2 bilhões. O que as postagens não informam é que, desse total, R$ 142,1 bilhões são obrigações constitucionais, como consta no Portal da Transparência.
Os valores somados incluíram ainda R$ 387 bilhões em “benefícios”. Deste total, R$ 103,3 bilhões se referem a pagamentos do Bolsa Família, do BPC (benefício de prestação continuada) e do seguro defeso.
Os três programas têm uma história consolidada, anterior à pandemia. O auxílio emergencial, este sim criado no contexto do combate ao novo coronavírus, consumiu os outros R$ 283,7 bilhões.
Um segundo levantamento feito pela Folha mostra que menos da metade do montante divulgado pelo presidente pode ter se destinado a ações de combate à Covid-19. Neste caso, a reportagem levou em conta dados de execução orçamentária atualizados pela Câmara dos Deputados.
As transferências aos estados com essa finalidade chegam a R$ 59,3 bilhões. Somado o valor do auxílio emergencial, os repasses totalizam R$ 343 bilhões. Isto equivale a 42% do total de repasses aos estados detalhado em publicações de Bolsonaro, do governo e de auxiliares.
Nesta terça-feira (2), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação, no Orçamento, de um fundo emergencial de combate à pandemia da Covid-19 que seria uma “megarrubrica” orçamentária com todos os recursos relacionados à crise sanitária.
Em um aceno aos governadores, em atrito com Bolsonaro por causa da adoção de medidas restritivas contra a pandemia, Lira chamou os chefes dos Executivos locais para debater soluções conjuntas para o enfrentamento da crise sanitária, afirmando que não é o momento de apontar “os dedos uns contra os outros.”
“É hora de nós todos nos unirmos para apontarmos a única coisa que importa, na única direção que importa: seringas, vacinas na direção dos braços dos brasileiros”, disse o presidente da Câmara, em discurso distribuído à imprensa.
Sobre o fundo, afirmou que “o somatório de todas as despesas orçamentárias diluídas, que ficarão agora totalizadas numa contabilidade única, permitindo sabermos todas as despesas para o enfrentamento à Covid no Orçamento Geral da União”.
Segundo Lira, o fundo não extrapola o teto de gastos e reuniria, por exemplo, os valores destinados ao pagamento das próximas parcelas do auxílio emergencial, em números estimados.
O líder do centrão pediu a governadores que mobilizem suas bancadas para que aloquem “novos recursos para algum novo programa ou para o reforço de algumas dessas rubricas” e para que convençam congressistas de seus estados “para que destinem parte ou quem sabe a totalidade de suas emendas” ao fundo.
Além disso, sugeriu que qualquer excesso de arrecadação seja “prioritariamente alocado para essas rubricas que compõem esse fundo emergencial”.
Lira propôs ainda a criação de um grupo com um governador por região e representantes do governo federal e da Câmara dos Deputados e e dos ministérios da Saúde e das Relações Exteriores.
“O Brasil já tem problemas demais. E a política não pode ser mais um deles. A política tem de ser parte da solução”, afirmou.
O encontro contou ainda com a participação da presidente da CMO (Comissão Mista de Orçamento), deputada Flávia Arruda (PL-DF), e o relator do Orçamento, senador Marcio Bittar (MDB-AC).
Arruda indicou que serão destinados R$ 12 bilhões em emendas individuais e R$ 2,5 bilhões do fundo emergencial para o combate à Covid para o enfrentamento da pandemia no Brasil.