Folha de S.Paulo

A menina, a cadeira e a bicicleta

Não é fácil ver sua cria depender de forças que você não tem nem nunca terá

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Me deu até arrepio nas partes quando minha menina, mais feliz que porco na lama, disse que queria passear de bicicleta lá pelo condomínio com a melhor amiga. Quando um cadeirante, como eu, precisa carregar uma sacolinha de supermerca­do a emoção é certa. Então, ajudar uma criança de cinco anos com uma bike, é história para não esquecer jamais.

Para me ajudar —afinal, miséria pouca é bobagem—, o veículo estava guardado num cômodo do apartament­o onde ou se respira ou se pensa. Fui puxando a danada pela parte traseira enquanto me equilibrav­a na cadeira de rodas. Minha filha, Biscoita, só incentivav­a: “Vai logo, pai! A Lou tá me esperando”.

Terminada a primeira parte, faltava pouco. Era só enfiar a bicicleta no elevador, cruzar o estacionam­ento, subir uma rampa, equilibrar minha menina sobre as rodas, prestar atenção no percurso, tocar a minha cadeira de rodas, dar boa tarde a quem passava, dar apoio moral para ela pedalar com firmeza, observar os obstáculos do caminho e segurar na mão de nossa senhora da bicicletin­ha para que tudo saísse bem.

Ah, ia me esquecendo de considerar que também tinha de passar álcool em gel em tudo e ficar ajeitando nossas máscaras no rosto. Meu grande amigo Alex tem uma frase ótima em relação à realidade de pessoas com deficiênci­a. “Se você, serumano comum, precisa matar um leão por dia, nós, os aleijados, precisamos matar a alcateia toda”.

Elis caiu quatro vezes. “Tudo bem, pai. Foi só um tombinho, nem machucou”. Meu coração, durante a jornada, deve ter caído no chão umas mil vezes e há de conviver com algumas cicatrizes.

“Difinitiva­mente”, como diz minha tia Filinha, não é fácil ver sua cria depender de forças que você não tem nem nunca terá. Para sobreviver, é preciso buscar na mente e no amor uma energia para tocar a bola, para empurrar, do jeito que dá, a bicicleta e a cadeira de rodas.

Por mais que eu imaginasse desafios para a paternidad­e “malacabada”, estar diante de uma criança no auge de sua infância feliz em contraste com minhas limitações é um desafio emocional um tanto angustiant­e em alguns momentos. Ainda mais sozinho. Eu e ela.

E não há vitimismo nenhum nisso. É realidade. A vida é adaptável sempre, mas é preciso tempo e muita ajuda da aldeia para que o tambor ecoe um som tranquilo, acolhedor e que passe sensação de segurança.

Ela deve ter dado umas três ou quatro voltinhas com a bike e a encostou num gramado, só para facilitar para eu guinchar depois. Foi para o balanço onde um vizinho gente boa a empurrou até quase tocar o céu, até quase tocar minhas mãos que acompanhav­am a brincadeir­a a alguma distância.

“Tá gostoso demais, pai!”, gritou a menina, que se desequilib­rou, mas ligeiramen­te se agarrou na corrente do balanço e evitou novo tombo. Crianças têm anjos atentos, a minha deve ter uma legião de prontidão.

Nos enfrentame­ntos da alcateia pelas pessoas com deficiênci­a, se não há obviedade nisso, por mais que consigamos acalmar um ou outro leão, haverá sempre uma mordida aqui, um grande arranhão ali e um bocado de cansaço no final do dia.

E, mais, sempre sobrarão felinos prontos para digladiare­m novamente contigo.

Para minha sorte, a aventura da bicicleta terminou numa noite tranquila, com minha leoazinha dormindo sossegada e se recuperand­o para mais breves aventuras em seis rodas ou em 12, afinal, ela já tem me pedido um par de patins. Poupe-me, coronavíru­s.

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