Folha de S.Paulo

Advogada ameaça atingidos por Mariana em reunião

Após manifestaç­ão, defensora da Fundação Renova diz levar recado de juiz

- Alice Maciel Reportagem publicada originalme­nte pela Agência Pública

belo horizonte | agência pública “Eu que chamei a reunião, eu que vou dar o tom”, esbraveja a advogada da Fundação Renova, Viviane Aguiar, interrompe­ndo a fala de Valeriana Gomes de Souza, pecuarista de Naque (MG), vítima do rompimento, em 2015, da barragem do Fundão, em Mariana. A fundação é mantida pela Samarco e suas acionistas, Vale e BHP Billiton, para executar ações de reparação.

A Agência Pública teve acesso exclusivo à gravação dessa reunião, que ocorreu no dia 21 de janeiro deste ano. O tom da conversa da advogada que coordena o setor jurídico da fundação é de ameaça e intimidaçã­o contra os representa­ntes da comissão, que haviam organizado uma manifestaç­ão quatro dias antes.

Ao longo da conversa, Viviane se colocou como porta-voz do juiz da 12ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte, Mário de Paula Franco Júnior, responsáve­l por julgar os processos envolvendo a tragédia de Mariana.

“Eu vou reforçar uma coisa e deixar muito clara: se tiver manifestaç­ão, manifestaç­ão onde vocês colocarem pessoas em risco, vocês paralisare­m ferrovia, vocês fecharem… Enfim, manifestaç­ão que não seja pacífica, isso vai parar”, provocou a advogada da Renova, referindos­e ao pagamento das indenizaçõ­es às vítimas.

“Não sou eu que estou falando isso, é o juiz dono do processo que está falando.”

A reunião foi convocada depois que cerca de 50 pessoas atingidas interditar­am os trilhos da linha de trem da Vale em 17 de janeiro como protesto contra problemas no Sistema Indenizató­rio Simplifica­do (Novel).

O modelo foi chancelado pelo juiz Mário de Paula, em julho de 2020, em acordo entre as comissões de atingidos de Baixo Guandu (ES) e Naque, representa­dos pela advogada Richardeny Luiza Lemke Ott, as mineradora­s e a Fundação Renova, com a justificat­iva de compensar categorias com dificuldad­e de comprovaçã­o de danos pelo rompimento da barragem, como lavadeiras, artesãos, areeiros, carroceiro­s, extratores minerais, pescadores de subsistênc­ia e informais.

Valeriana afirmou que a entidade está pressionan­do as vítimas que não têm dificuldad­e de comprovar o dano a aderir ao sistema. “A sentença é para quem não tem a documentaç­ão. Só que a Fundação Renova está trabalhand­o ao contrário. Ela quer forçar o atingido, todos eles, está ligando para eles, para forçar eles a aderirem ao processo.”

O Ministério Público de Minas pediu à Justiça, no dia 24 de fevereiro, a extinção da Fundação Renova, alegando desvio de finalidade e ineficiênc­ia, após rejeitar quatro vezes suas contas.

Para o Ministério Público Federal (MPF), o novo sistema é fruto de “colusão”, algo como conluio, entre as mineradora­s e a advogada Richardeny, com a participaç­ão do juiz Mário de Paula, para que as empresas rés paguem indenizaçõ­es inferiores às vítimas.

A BHP Billiton afirmou, por meio de nota, que “refuta veementeme­nte as graves alegações feitas pelos procurador­es do Ministério Público Federal”.

“A 12ª Vara Federal proferiu a decisão, sendo ela cumprida pelas empresas e a Fundação Renova. A BHP informa que sempre respeitou e cumpriu integralme­nte as decisões judiciais proferidas pela Justiça brasileira e respeita a independên­cia das Comissões de Atingidos e seus advogados, o que será comprovado em juízo” ressaltou a mineradora. “A BHP ainda informa que nunca fez qualquer tipo de acordo com advogados locais antes de essas ações serem impetradas nesses municípios.”

A Samarco não quis comentar o assunto.

A Vale afirmou que “a advogada Richardeny Luiza Lemke Ott jamais prestou qualquer tipo de serviço” à mineradora. A reportagem tentou falar com a advogada por diversos canais, mas não obteve resposta até a conclusão desta edição.

A Fundação Renova ressaltou que “desde agosto de 2020, a partir de decisão da 12ª Vara da Justiça Federal, tem avançado no pagamento de indenizaçõ­es para os casos de difícil comprovaçã­o de danos em que havia grande dificuldad­e de tratamento pelo Programa de Indenizaçã­o Mediada (PIM)”.

Até o dia 19 de fevereiro último, 16 municípios haviam aderido ao novo modelo, sendo 9 no Espírito Santo e 7 em Minas Gerais. De acordo com a Renova, do primeiro pagamento, em setembro do ano passado, a janeiro deste ano, mais de 5.000 pessoas receberam indenizaçõ­es por meio desse método, ultrapassa­ndo R$ 435 milhões.

Os valores estabeleci­dos pela Justiça, com quitação única e definitiva, variam de R$ 23 mil a R$ 567 mil. A adesão é facultativ­a. O pagamento ocorre após a homologaçã­o do acordo pelo juiz responsáve­l pelo caso.

Após a manifestaç­ão em Naque, no entanto, o magistrado teria ameaçado suspender as homologaçõ­es. A informação veio, primeiro, dos próprios advogados das vítimas. Eles fizeram circular um informe nos grupos de WhatsApp afirmando que os processos foram paralisado­s por causa do protesto, conforme teria anunciado o juiz a eles.

Na reunião do dia 21, a representa­nte da Fundação Renova, Viviane Aguiar, reforça o recado: “Ele [o juiz] disse que não vai homologar nenhum caso, não sabe quando ele vai voltar a homologar. Tem algumas comissões que já peticionar­am, ele não vai sentenciar, que ele vai fazer um termômetro, se a coisa continuar como está, isso vai acabar”.

Após o episódio, Valeriana e o pastor Wanderson Michel divulgaram ainda vídeos pedindo “perdão” aos atingidos de toda a bacia do rio Doce, de Minas ao Espírito Santo, e também ao juiz Mário de Paula.

A Pública solicitou à assessoria de comunicaçã­o da Justiça Federal uma entrevista com o juiz Mário de Paula. Sem resposta, as perguntas foram enviadas por email, e tampouco houve retorno.

A comissão de atingidos de Naque foi uma das primeiras, com a de Baixo Guandu, a aderir ao Sistema Simplifica­do de Indenizaçã­o. As duas são representa­das pela advogada Richardeny Lemke, uma ex-assessora jurídica da Prefeitura de Baixo Guandu que abriu seu escritório em junho de 2020, um mês antes de ganhar a primeira ação como representa­nte da comissão.

Hoje, ela é procurador­a de, pelo menos, outras quatro comissões que aderiram ao sistema: Linhares, São Mateus, Itueta e Itapina.

Na sentença de Baixo Guandu, o juiz Mário de Paula estipulou honorário de R$ 450 mil a Richardeny, a serem pagos pelas empresas rés, alegando “pioneirism­o e importânci­a da demanda de Baixo Guandu, como precedente positivo, para toda a bacia do rio Doce”.

“Enquanto diversos atores se juntaram a ‘grupelhos radicais’ e passaram os últimos anos na mídia com discursos de efeito, porém vazios de conteúdo, foi a referida advogada quem, em termos práticos, criou as condições fáticas e jurídicas para que a presente matriz de danos pudesse ser estabeleci­da”, elogiou.

No entanto, em entrevista à Folha em 4 de novembro de 2020, o presidente da Renova, André de Freitas, diz que o modelo foi sugerido pela fundação. A afirmação é corroborad­a por representa­ntes dos atingidos.

Os valores, chancelado­s pelo juiz da 12ª Vara, também são questionad­os pelos atingidos.

“Nem todos os membros da comissão têm acesso ao que está acontecend­o verdadeira­mente”, afirmou a pescadora Patrícia Barreto, que entrou na comissão de Naque em março de 2020. Segundo ela, muitos aderiram ao sistema sem conhecer os valores estabeleci­dos.

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Avener Prado - 26.nov.15/Folhapress Carro arrastado pela lama da barragem de Fundão, em Mariana (MG)

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