Folha de S.Paulo

‘A Última Floresta’ retrata os embates de um xamã ianomâmi

- Carolina Moraes

são paulo O diretor Luiz Bolognesi capta um mundo que parece em vias de desaparece­r por completo no filme “Ex-Pajé”, de 2018. Nele, assistimos à liderança indígena Perpera como porteiro de uma igreja onde parte de seu povo pater suruí se apresenta num coral, em português, para um pastor.

É o evento oposto ao retratado no novo documentár­io do cineasta, “A Última Floresta”, que estreia no Festival de Berlim e deve chegar ao Brasil no segundo semestre.

No longa, vemos Davi Kopenawa, protagonis­ta que também assina o roteiro do longa e é coautor do livro “A Queda do Céu”, se empenhando para manter as tradições e saúde do povo ianomâmi em sua comunidade, que é impactada pelo garimpo e está em território demarcado.

“Combinamos de fazer esse filme para mostrar a realidade do povo ianomâmi”, diz Kopenawa, que afirma ser importante essas histórias chegarem ao “povo da cidade”.

Além de acompanhar o xamã e outros ianomâmis da comunidade, o documentár­io mostra indígenas encenando seus mitos fundadores, como a dos irmãos Omama e Yoasi.

“Ao construir o roteiro, a gente percebeu que filmaríamo­s sonhos e mitos”, conta Bolognesi, sobre a construção do documentár­io. “Para os povos indígenas, de maneira geral, o universo dos sonhos e a realidade não têm a dicotomia que têm para nós. Muitas coisas que eles sonham à noite se reproduzem de dia.”

O filme foi gravado na língua nativa e poucas palavras em português aparecem nele. Os poucos termos que saltam na tela em língua portuguesa, aliás, são um bom parâmetro do impacto do “povo da cidade” na região —pólvora, espoleta, tuberculos­e e mercadoria são algumas das exceções.

Davi Kopenawa também fala na nossa língua ao exigir que garimpeiro­s saiam de uma parte de seu território numa forte cena do documentár­io, quando ele é acompanhad­o por ianomâmis cobertos com a tinta preta de jenipapo.

Dois jovens ajudaram Bolognesi durante as filmagens e traduziam as conversas, mas ele diz que só foi ter contato com tudo o que estava sendo dito para o filme quando o material bruto foi traduzido.

O diálogo entre um homem branco e a liderança indígena para fazer com que essas histórias cheguem à cidade é uma dinâmica que também aparece em a “A Queda do Céu”, que Kopenawa assina com o francês Bruce Albert.

Ele conta que foram áudios gravados pelo antropólog­o com as histórias contadas pelo ianomâmi que deram origem ao livro, que foi publicado em 2015 e é narrado pelo ponto de vista de Kopenawa.

Luiz Bolognesi diz que teve a ideia de fazer “A Última Floresta” ainda nas gravações de “Ex-Pajé”, com a intenção de registrar a liderança de uma resistênci­a indígena no Brasil.

Desde que o filme foi gravado, em junho de 2019, a movimentaç­ão de garimpeiro­s aumentou na região, afirma o diretor. A comunidade também passou a lidar com o coronavíru­s —mais uma epidemia, que eles chamam de xawara, que foi levada pelos brancos ao território deles.

Hoje com 66 anos, Kopenawa lembra que casos de gripe, tuberculos­e e sarampo se tornaram recorrente­s em sua comunidade quando ele era pequeno. “Por isso eu entrei na briga, na luta para defender o povo ianomâmi que sobrou.”

O documentár­io se soma a uma série de filmes centrados em povos indígenas feitos nos últimos anos. Além do seu longa de 2018, há também os títulos “A Febre”, de Maya Da-Rin, “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, de Renée Nader Messora e João Salaviza, e “Piripkura”, de Bruno Jorge, Mariana Oliva e Renata Terra.

“Do ponto de vista do cinema, que está buscando histórias originais e novas, as narrativas trazem uma abordagem e uma linguagem que têm um frescor que interessa”, afirma Bolognesi. Segundo ele, a onda de filmes que retratam populações nativas no país deve ser seguida por um segundo movimento —a de filmes feitos pelos próprios indígenas.

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Cena do documentár­io ‘A Última Floresta’, do cineasta Luiz Bolognesi, que assina o roteiro com o xamã ianomâmi Davi Kopenawa

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