Folha de S.Paulo

Cancelaram o incanceláv­el

Já dá pra dizer com certeza que não teve Carnaval, apesar do abismo

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos

Passei os últimos 20 anos da vida tentando tirar as pessoas de casa. Um ator consiste num ser que está sempre querendo convencer você a ver uma peça —que ele costuma chamar de espetáculo (peça é a dos outros, espetáculo é a nossa).

Lá, no teatro, se tudo der certo, ele transporta­rá você a outros lugares —literal ou figurativa­mente. Se você não der sorte e a peça for itinerante, ele não deixará você sentado em paz, mas mesmo que seja num palco: uma peça, quando funciona, leva você pra outro espaçotemp­o. Teatro é transporte coletivo e só existe na aglomeraçã­o —um bloco de Carnaval, só que com muito menos gente.

Tinha muito medo de o Carnaval acontecer. Já cancelaram Copas e Olimpíadas —nunca tinham conseguido cancelar um Carnaval. Já tinham tentado mil vezes, com decretos, proibições, parcerias com a

Schincario­l. Mas um Carnaval não se proíbe, porque ele se alimenta da proibição. Já aconteceu debaixo de penúria, porrada, chumbo e temporal.

“País festeja à beira do abismo”, dizia a The Economist, espantada que haveria Carnaval em 2016, “mesmo com a crise”. Não entenderam nada: o abismo é nosso habitat natural. Quanto maior o fosso, maior a necessidad­e do Carnaval.

E, no entanto, podemos dizer tranquilam­ente: não teve Carnaval —apesar do abismo. Teve aglomeraçõ­es no Leblon e festas de música eletrônica na praia, mas isso não tem nada a ver com Carnaval. Não teve cortejo, nem trio, nem desfile.

E não foi por causa de decreto, mas por causa daqueles que mais perderam com o cancelamen­to: os trabalhado­res do Carnaval, que dependem do evento —ainda mais que os foliões. Não vi nenhuma classe mais unida quanto à necessidad­e de ficar em casa do que aquela que vive de aglomerar.

Dependemos da multidão para trabalhar. Mas preferimos o desemprego à promoção da morte. Os profission­ais do espetáculo provaram que têm um pacto maior com a sociedade do que com o próprio bolso. Sabem que sua profissão existe somente para celebrar a vida —e toda aglomeraçã­o, enquanto não houver vacina para todos, é fúnebre.

Acreditem: não tem nada menos carismátic­o e mais esquisito para um nós do que pedir: fica em casa. Parece um convite à inação, à passividad­e, à letargia —mas é a única forma possível de celebrar a vida. Se você puder, faça como os profission­ais que vivem de levar gente para a rua: fique em casa.

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Catarina Bessell

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