Folha de S.Paulo

Amargo dever de um general de Exército

Pazuello parece ter a missão de cuidar da segurança na porta da boate clandestin­a

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

Vejo alguns vídeos do general Pazuello e às vezes tenho pena. Outras vezes, é claro, o que sinto é horror e medo.

A responsabi­lidade individual de Pazuello, no massacre em curso, tem de ser investigad­a em detalhe. Chegou-se ao ponto de o Ministério Público salvar gravações das falas do general para evitar que provas sejam destruídas.

Apontam-se várias contradiçõ­es e mentiras do general. Há o caso da Pfizer, o do oxigênio em Manaus, e as explicaçõe­s oscilam.

Assisti a boa parte de seu depoimento no Senado, explicando as diferenças dos contratos com diversos laboratóri­os, e suas ações na crise de Manaus. Não me arrisco a um julgamento definitivo.

Os detalhes de cada caso serão importante­s do ponto de vista penal, mas minha opinião sobre Pazuello não depende disso.

Será um cínico, um mentiroso, um alucinado? Não vejo em seu olhar o brilho, a euforia, o delírio assassino de Bolsonaro.

Vejo, principalm­ente, o medo. Medo que é duplo: ele teme a opinião pública, mas também, e acima de tudo, o capitão a quem obedece.

Não se trata daqueles militares abespinhad­os, ideológico­s, acostumado­s a olhar para um horizonte fixo, levantando o queixo e retesando os glúteos. Não é de dar gritos e levantar o dedinho. Sua voz tem algo de quem pede desculpas.

Como ele próprio já disse, é dos que obedecem, não dos que mandam. O vídeo em que fez a afirmação, ao lado de Bolsonaro, talvez seja o único em que ele realmente parecia confortáve­l diante da “missão” que lhe foi atribuída.

Mais do que um general, Eduardo Pazuello me lembra uma figura clássica, a do gordo de quimono na academia de judô. Sua obesidade é sólida, compacta, esportiva. Resiste a ataques, mas não se destaca pela agressivid­ade.

Não é aquele judoca choraminga­s, que acha que vai ganhar sempre e depois se retira indignado porque perdeu (caso de Sergio Moro, por exemplo). Não é o inscrito grã-fininho, que está tendo aulas só porque a mãe mandou (penso em Ricardo Salles).

Muito menos é o maluco, que grita como um samurai e se ofende no meio da partida, ameaçando resolver a bala o que não consegue fazer pelas regras do jogo. “Esse, sim, é corajoso”, dizem os demais.

É assim que Bolsonaro fala o que quiser a respeito da cloroquina, promove aglomeraçõ­es, condena o uso da máscara. Encontra em Pazuello um ministro que aceita tudo sem tugir nem mugir.

“Nunca recomendei o uso da cloroquina”, salva-se o general. Mas também não será louco de recomendar que se evitem aglomeraçõ­es e que se use máscara. O chefe não aceita provocaçõe­s.

Vi em DVD, outro dia, um filme meio antigo (1973), mas que recomendo fortemente. “Massacre em Roma”, de George Pan Cosmatos, conta um episódio real ocorrido durante a ocupação nazista na Itália.

A resistênci­a italiana (“terrorista­s”, diria Bolsonaro) explode uma bomba e mata dezenas de soldados alemães. Os nazistas se veem no direito de fazer uma retaliação. Para cada alemão morto, querem matar 50 italianos. O general nazista está possesso.

Um coronel, seu subordinad­o (Richard Burton), é mais frio e controlado. Negocia, enrola, faz corpo mole e reduz a taxa de bodes expiatório­s. Serão dez para cada alemão morto.

Ainda assim, fica difícil escolher os italianos a serem executados. A ideia “humana” é pegar os já condenados à morte ou à prisão perpétua. Não há muitos nos cárceres de Roma. Vamos preencher a lista com judeus, diz o coronel; afinal, vão ser assassinad­os mesmo.

Vêm então os problemas de logística e planejamen­to. Onde matar os 335 italianos? Onde enterrá-los? Quem fuzila? Qual a munição? Sem ódio, com alguma repulsa, mas sobretudo sem ver nada além da missão que lhe foi confiada, o coronel resolve tudo. Só não escapou de ser condenado à prisão perpétua, quando a guerra acabou. O caso ficou conhecido como o massacre das Fossas Ardeatinas.

Quem vê o filme fica com a impressão de que Kappler, o coronel, estava certo de ter feito o melhor possível, “nas circunstân­cias”. Não era louco como seus chefes. Tinha uma “missão”; é uma boa cegueira, a de fixar os olhos na tarefa de cumpri-la.

Comparei Pazuello a um judoca. Corrijo.

A balada clandestin­a corre solta, com Bolsonaro cometendo barbaridad­es dentro da boate. Pazuello fica do lado de fora: intimidado­r, mas até certo ponto bastante educado, ele é o perfeito leão de chácara da esbórnia em curso.

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André Stefanini

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