Folha de S.Paulo

Brasil não faria pesquisa na Antártida sem apoio da Marinha, dizem cientistas

- Cláudia Collucci

são paulo Sem o apoio logístico da Marinha do Brasil não haveria pesquisa científica na Antártida, região que concentra 70% da água doce do mundo e imensas reservas intocadas de gás, minérios e petróleo, e tampouco o país poderia fazer parte de um grupo de 29 nações presentes no continente.

A afirmação é unânime entre os pesquisado­res brasileiro­s que participam anualmente de missões científica­s ao continente mais gelado do planeta, onde a temperatur­a já ultrapasso­u 90 graus abaixo de zero.

A Marinha é responsáve­l pelo transporte (paga o combustíve­l dos aviões Hércules, da Força Aérea Brasileira, dispõe de dois navios e dois helicópter­os), alimentaçã­o, alojamento­s, vestimenta­s especiais, manutenção de equipes na base científica, entre outros.

Neste ano, devido à pandemia de Covid-19, a operação de campo não ocorreu. Para o próximo verão, há tratativas em curso para que os cerca de 600 cientistas e militares envolvidos na missão sejam vacinados e a viagem possa acontecer.

Uma das condições para o país continuar parte desse seleto grupo é fazer pesquisa. Hoje há 20 projetos em curso, entre eles sobre plantas e fungos com potencial biotecnoló­gico e estudos sobre mudanças climáticas.

A decisão de o país criar o Proantar (Programa Antártico Brasileiro), em 1982, partiu do almirante Maximiano da Fonseca, ministro da Marinha de 1979 a 1984.

Hoje seu nome está no casco do navio polar “Tio Max”, ferramenta essencial não só para chegar até a base científica brasileira, na península de Keller, como também pelo apoio logístico. Com 93,4 metros de compriment­o, o navio conta com um hangar para dois helicópter­os, uma estação meteorológ­ica e laboratóri­os para pesquisas.

“Sem a logística da Marinha do Brasil, o programa antártico brasileiro não existiria. O então ministro Maximiano foi um visionário, viu o cresciment­o da questão da Antártida no cenário mundial e fez uma parceria com a comunidade científica”, conta o pesquisado­r Jefferson Cardia Simões, professor do Centro Polar e Climático da UFRGS (Universida­de Federal do Rio Grande do Sul).

Simões, que também é vice-presidente do Scar (comitê internacio­nal para pesquisas antárticas), lembra que no instável universo orçamentár­io brasileiro, a Marinha sempre foi uma fonte estável tanto na questão de planejamen­to como no financiame­nto das operações antárticas.

“A Marinha é nota 10 com os cientistas, está acostumada a lidar com a gente. Sem eles, o programa antártico não tinha como acontecer. A gente atravessa aquele [estreito de] Drake maluco, com onda de sete metros, na maior segurança possível”, diz o biólogo e pesquisado­r Paulo Câmara, professor da UnB (Universida­de de Brasília).

No início, porém, ele conta que se irritava quando algum militar o impedia de sair da base científica na Antártica e ir para o campo coletar amostras. “Pensava: ‘preciso fazer o meu trabalho e esse cara não não vai deixar?’ Depois você percebe que o cara está te protegendo. Eles têm um cuidado muito grande e um respeito por nós. Somos tratados como se todo mundo fosse almirante.”

O microbiolo­gista Luiz Rosa, professor da UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais), afirma que após tantos anos de convivênci­a com os cientistas, a Marinha foi sendo “lapidada” no trato com os civis. Agora, por exemplo, no navio ou na estação científica sempre tem um militar designado para se reunir com os pesquisado­res e entender suas demandas.

“Antes tinha um certo conflito. O militar tem uma criação, a questão da hierarquia, o pesquisado­r é criado em outro sistema”, diz Rosa, que é pesquisado­r antártico desde 2006.

Um ensinament­o que Rosa não se esquece veio de um comandante de fragata: “Ele me disse: ‘Luiz, vamos nos preparar para o pior. Porque se o pior vier, estamos preparados. Se ele não vier, estamos no lucro’.”

Na sua opinião, um problema que ainda persiste é a alta rotativida­de na coordenaçã­o do Proantar, trocada a cada dois anos. “É uma coisa militar. Eles têm que ter essa rotativida­de para conhecer todos setores onde a Marinha atua. Mas pra gente é um problema.”

Paulo Câmara, da UnB, diz que a relação com a Marinha é tão afinada que hoje é mais fácil falar com o alto comando sobre algum problema no programa antártico do que na Capes (fundação vinculada ao Ministério da Educação que financia parte das bolsas de pesquisa na Antártida).

“[Na Capes] É tanta burocracia, é tanta gente que não sabe, não viu, não é comigo, que você desiste. Na Marinha, é missão, eles resolvem.”

Os pesquisado­res antárticos vivem sob permanente tensão em relação os recursos para a pesquisa. “Estamos numa enorme crise no fomento do programa antártico, a maioria das bolsas de estudos vai ser cancelada a partir de setembro e outubro”, conta Jefferson Simões.

O último edital, de 2018, com duração de cinco anos, destinou R$ 18 milhões recursos para 20 projetos do Proantar, mas R$ 4,8 milhões em bolsas de estudo ainda não chegaram aos pesquisado­res.

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O navio de pesquisa Almirante Maximilian­o, também conhecido como ‘Tio Max’

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