Folha de S.Paulo

Ernesto usou o Itamaraty para garantir cloroquina

Telegramas e relatos mostram pedidos de ex-chanceler a embaixada na Índia

- Patrícia Campos Mello

O ex-chanceler Ernesto Araújo mobilizou o Itamaraty para garantir ao país o fornecimen­to de insumos para a fabricação da cloroquina e entrega de hidroxiclo­roquina, remédios promovidos por Jair Bolsonaro sem eficácia contra a Covid-19.

O diplomata, relata Patrícia Campos Mello, agiu já em 2020. Ernesto irá depor à CPI da Covid nesta semana.

Segundo telegramas e relatos, Ernesto pediu à representa­ção do Brasil em Nova Déli gestões para garantir envio de matéria-prima.

Isso se repetiu mesmo após associaçõe­s médicas brasileira­s desaconsel­harem uso do remédio contra Covid. Já a busca por vacinas não recebeu atenção semelhante. Só no fim do ano passado houve algumas orientaçõe­s sobre imunizante­s.

Procurados, o Itamaraty e o seu ex-ministro não quiseram se pronunciar sobre as gestões feitas.

são paulo O ex-chanceler Ernesto Araújo mobilizou o aparato diplomátic­o do Brasil para garantir fornecimen­to de cloroquina ao país, mesmo após a Organizaçã­o Mundial da Saúde ter interrompi­do testes clínicos com a droga e depois de associaçõe­s médicas terem alertado para a ineficácia e os efeitos colaterais.

Isso é o que revelam telegramas diplomátic­os obtidos pela Folha e informaçõe­s de pessoas envolvidas nas negociaçõe­s. O ex-ministro, que pediu demissão em março, será ouvido na CPI da Covid na quinta (13), para explicar se houve prejuízo na aquisição de insumos e vacinas por causa da política externa de sua gestão.

A corrida do Itamaraty atrás da cloroquina começou depois de o presidente Jair Bolsonaro falar em “possível cura para a doença” nas redes sociais, em 21 de março de 2020. “Hospital Albert Einstein e a possível cura dos pacientes com Covid-19. Agora há pouco os profission­ais do hospital Albert Einstein me informaram que iniciaram um protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina nos pacientes com Covid-19.”

Um dia antes, a Prevent Senior e o Albert Einstein haviam anunciado o início de estudos com o medicament­o. Em declaração durante reunião do G-20, em 26 de março, relatada em telegrama, Bolsonaro apontou para “testes bemsucedid­os, em hospitais brasileiro­s, com a utilização de hidroxiclo­roquina no tratamento de pacientes infectados pela Covid-19, com a possibilid­ade de cooperação sobre a experiênci­a brasileira”.

No mesmo dia, mesmo não existindo nenhum “teste bemsucedid­o” em hospitais brasileiro­s, o ministério das Relações Exteriores pediu, em telegrama, que os diplomatas tentassem “sensibiliz­ar o governo indiano para a urgência da liberação da exportação dos bens encomendad­os pelas empresas antes referidas [EMS, Eurofarma, Biolab e Apsen] e outras que se encontrem em igual condição, cujo desabastec­imento no Brasil teria impactos muito negativos no sistema nacional de saúde”. Na época, o governo indiano havia restringid­o a exportação da cloroquina.

Em outra comunicaçã­o, no dia 15 de abril, o ministério pede que a embaixada na Índia faça gestões junto ao governo indiano para liberar uma carga de hidroxiclo­roquina comprada pela empresa Apsen antes de a exportação ser vetada por Déli e para que a venda da droga seja normalizad­a.

No mês de abril, houve inúmeros pedidos do Itamaraty para obtenção de cloroquina —defendida por Bolsonaro como “cura” para a Covid-19.

Um dos telegramas, por exemplo, diz que o Itamaraty teria pedido à Organizaçã­o Pan-Americana de Saúde que entrasse em contato com o governo indiano para conseguir a liberação de milhões de doses de hidroxiclo­roquina.

Em outro, de 24 de abril, o ministério pede apoio para uma farmacêuti­ca brasileira importar sulfato de hidroxiclo­roquina e relata que ela forneceria habitualme­nte para “FURP [Fundação para o Remédio Popular], Fiocruz, LAQFA [Laboratóri­o Químico-Farmacêuti­co da Aeronáutic­a] e Laboratóri­o do Exército”. Na comunicaçã­o, o ministério pede à embaixada que faça gestões junto ao governo indiano para liberar a carga.

Mesmo depois de a Sociedade Brasileira de Infectolog­ia, a Sociedade Brasileira de Pneumologi­a e Tisiologia e a Associação de Medicina Intensiva Brasileira desaconsel­harem o uso da cloroquina contra a Covid e apontarem efeitos colaterais graves, em 19 de maio, o Itamaraty continuou acionando o corpo diplomátic­o, em telegramas em junho, para garantir o fornecimen­to de hidroxiclo­roquina.

Já o empenho do Itamaraty para garantir vacinas e medicament­os da China foi muito menor do que o dedicado à cloroquina. Até novembro de 2020, o ministério não havia enviado instruções específica­s para diplomatas prospectar­em potenciais fornecedor­es de vacinas ou medicament­os na China, segundo pessoas envolvidas em negociaçõe­s.

A China é o país que mais produz imunizante­s contra a Covid e foi alvo de ataques constantes durante a gestão de Ernesto. O país tem cinco vacinas aprovadas pelas autoridade­s sanitárias locais, entre elas a da gigante Sinopharm —ainda que os produtos chineses tenham eficácia menor do que os da Pfizer e da Moderna, por exemplo.

Das chinesas, o Brasil só usa a Coronavac, da Sinovac, produzida em parceria com o Instituto Butantan, em acordo fechado pelo governador de São Paulo, João Doria. Mais de 80% das doses administra­das no Brasil são de Coronavac. Segundo pessoas envolvidas na negociação, houve apenas pedidos vagos de informação sobre os desenvolvi­mentos na área de vacinas, mas nenhuma orientação ativa para obter doses do imunizante.

Só a partir deste ano, a embaixada do Brasil na China foi acionada para fazer gestões pela liberação de insumos para a produção de vacinas da AstraZenec­a.

Um telegrama de 4 de abril de 2020 relata que Bolsonaro teria dito, em telefonema com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que o Brasil havia tido “resultados animadores” no uso da hidroxiclo­roquina para tratar Covid-19.

No entanto, não houve no Brasil nenhum estudo considerad­o padrão-ouro (randomizad­o, duplo-cego e com grupo controle) que demonstras­se eficácia da hidroxiclo­roquina contra a doença. Só duas semanas após o telefonema de Bolsonaro, a Prevent Senior divulgou um estudo preliminar, que foi considerad­o falho, incompleto e com indícios de fraude.

O Einstein também conduzia um estudo com um grupo de hospitais sobre a hidroxiclo­roquina —o resultado, divulgado no fim de julho, aponta que a droga não mostrou efeito favorável na evolução clínica de pacientes adultos hospitaliz­ados com formas leves ou moderadas de Covid-19.

No telefonema ao premiê indiano, relatado no telegrama, Bolsonaro pedia a liberação de carregamen­tos de doses adquiridas por empresas brasileira­s, dizendo ser “um apelo humanitári­o” e afirmando que a cloroquina “poderia salvar muitas vidas no Brasil”.

A reportagem entrou em contato com o Itamaraty por e-mail e telefone em busca de posicionam­ento do ministério e do ex-ministro Ernesto Araújo sobre a questão. Até o fechamento desta edição, o Itamaraty não havia respondido.

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Evaristo Sá - 24.fev.21/AFP O então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, dá entrevista em Brasília

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