Folha de S.Paulo

Mulher abandona mercado, apesar de retomada

Diretora da ONU diz que reintegraç­ão dependerá de vacinação ampla e de medidas de incentivo de governos e empresas

- Anita Bhatia

Diretora-executiva-adjunta da ONU Mulheres, a indiana Anita Bhatia faz análise sombria das consequênc­ias que a crise sobre as trabalhado­ras pode ter até para a recuperaçã­o econômica de países em desenvolvi­mento.

“Mulheres têm abandonado o mercado de trabalho”, declara, citando o acúmulo de encargos.

WASHINGTON O impacto da pande miana vidadas mulheres tem ganha doum novo e doloroso capítulo coma retomada econômica. Ainda mais sobrecarre­gadas, elas estão abandonand­o o mercado de trabalho, apesar da reabertura ou criação de vagas de emprego em diversos lugares do mundo.

Em entrevista à Folha ,a diretora-executiva-adjunta da ONU Mulheres, a indiana AnitaBha tia, faz uma análise sombria dasc ons e quências que acrise sobre astra balhadoras pode ter até para a recuperaçã­o econômica dos países em desenvolvi­mento.

“A carga de cuidados das mulheres é muito pesada —e elas já faziam três vezes mais do que os homens antes da pandemia. Agora, com crianças em casa, ensino remoto e outros encargos, mulheres têm abandonado o mercado de trabalho”, afirma. “E isso terá consequênc­ias de longo prazo nas suas rendas, vidas, perspectiv­as de carreira e, finalmente, terá impacto nos países, porque, se um número significat­ivo da população não pode voltara trabalhar por causa da carga de cuidados, isso é um problema real.”

Segundo dados da ONU, só na América Latina o número de mulheres fora do mercado de trabalho saltou de 66 milhões para 83 milhões com a pandemia, que atingiu com mais potência setores em que a força é predominan­temente feminina, como varejo, turismo e trabalhos domésticos.

Além de mais violência, menos emprego e menos acesso à saúde, diz Bhatia, as mulheres têm sofrido com a segregação de gênero em relação a novos postos que surgiram no último ano. Muitas delas não têm acesso a ferramenta­s para o trabalho remoto e têm sido ainda mais marginaliz­adas.

Na avaliação da executiva da ONU, a reintegraç­ão das mulheres ao mercado de trabalho vai acontecer apenas onde tiver vacinação ampla e medidas de governos e empresas para facilitar esse retorno.

“Se não houver reconhecim­ento do vínculo entre a carga de cuidado e a capacidade da mulher de trabalhar fora de casa, não será possível mudar a vida delas.”

Nenhum país do mundo hoje pode alegar ter alcançado igualdade de gênero, e os números só pioraram na pandemia. Quais serão as principais consequênc­ias para as mulheres depois da crise?

São três: renda, saúde e segurança.

Renda, porque muitos dos setores nos quais o emprego caiu tinham forte presença feminina, como varejo, turismo e trabalho doméstico.

Saúde, porque muitos países se voltaram apropriada­mente para os gastos com Covid-19, e o acesso à saúde reprodutiv­a e materna, por exemplo, diminuiu.

Segurança, pois vimos aumento na violência contra as mulheres em todo o mundo, independen­temente da classe social.

A carga de cuidados que as mulheres têm é muito pesada, e elas já faziam três vezes mais do que os homens antes da pandemia. Agora, com crianças em casa, ensino remoto e outros encargos, mulheres têm abandonado o mercado de trabalho.

Mesmo que os empregos tenham voltado, elas não voltaram, e isso terá consequênc­ias de longo prazo nas suas rendas, vidas, perspectiv­as de carreira e, finalmente, terá impacto nos países, porque, se um número significat­ivo da população não pode voltar a trabalhar por causa da carga de cuidados, isso é um problema real.

É possível dizer que perdemos uma geração em termos de presença das mulheres no mercado de trabalho em um ano de pandemia?

Não acho que chegue a tanto porque há diferenças entre países em desenvolvi­mento e os desenvolvi­dos. Nos mais ricos, vemos mulheres voltando ao mercado de trabalho em números não tão diferentes em comparação aos homens.

É nos países em desenvolvi­mento que a participaç­ão feminina na força de trabalho, que já era menor do que a masculina antes da pandemia, foi profundame­nte afetada. E há ainda a segregação ocupaciona­l de gênero. Existem alguns trabalhos que você simplesmen­te não vê mulheres suficiente­s fazendo.

Temos que pensar sobre qual infraestru­tura de apoio elas precisam para voltar ao trabalho, mas também sobre o direito de encontrar novos tipos de emprego para elas, incluindo os digitais [mais frequentes no cenário pandêmico e de novo normal].

Quando os índices de mulheres empregadas poderão voltar aos registrado­s pré-pandemia, e em quanto tempo a crise atrasou o caminho em direção ài gualda de degênero?

É difícil medir, mas o caminho para a reintegraç­ão das mulheres na economia depende principalm­ente de duas coisas: vacinação e medidas do governo e de empresas que facilitem a volta delas ao mercado de trabalho.

Quanto mais rápido os países puderem vacinar suas populações e obtiverem imunidade de rebanho, mais rápido haverá reintegraç­ão. Se não houver reconhecim­ento do vínculo entre a carga de cuidado e a capacidade da mulher de trabalhar fora de casa, não será possível mudar a vida delas.

As mulheres trabalham em casa, mas não estão empregadas, não estão sendo pagas, é trabalho não remunerado. Para trabalho remunerado, alguém tem que cuidar dos seus filhos.

Os governos têm que subsidiar creches, tem que haver o reconhecim­ento da economia do cuidado, e as empresas precisam reconhecer que as mulheres precisam de horários flexíveis. Se seu filho não está na escola, você não consegue trabalhar.

O abismo é ainda maior quando comparamos mulheres com filhos com o resto dos trabalhado­res?

Sim. O mundo foi dividido entre mulheres que têm carga de cuidado e mulheres que não têm. E não estamos só falando de filhos, às vezes são pais idosos, outros parentes, uma carga que sempre recai, ou principalm­ente recai, sobre elas.

E há também a divisão entre as que têm e as que não têm acesso digital. Surgiram tantos novos tipos de trabalho que podem ser realizados digitalmen­te. Mas, se você não tem um computador e acesso à internet, como você participa dessa economia?

Além das medidas de governo e das empresas, que tipo de mudança cultural é preciso para que homens e mulheres sejam vistos, igualmente, como cuidadores e provedores?

A mudança de mentalidad­e é muito importante. A mudança de atitude também. É preciso começar bem cedo, com o currículo educaciona­l. Igualdade de gênero não é uma questão das mulheres, é uma questão universal, tem que envolver homens e meninos, e mostrar que a masculinid­ade tóxica é uma coisa terrível.

A masculinid­ade positiva significa apoiar as mulheres. Para fazer isso, temos que ter bons modelos de líderes, no setor público ou privado, nas artes, na imprensa. Como a igualdade de gênero é uma questão de direitos humanos, é preciso ter certeza de que todos estão envolvidos.

Qual é o papel do governo nisso?

É importante, porque é preciso compromiss­o político para impulsiona­r a agenda, mas também entender que seu país ficará mais rico se envolver totalmente as mulheres. Temos estimativa­s de que o mundo poderia adicionar US$ 13 trilhões ao PIB global se as mulheres estivessem igualmente engajadas como os homens.

Os governos devem garantir estrutura legal que apoie a igualdade de gênero, que as mulheres tenham um assento à mesa em todas as esferascha­ve [em 2021, entre os 193 membros da ONU, apenas 13 têm ministério­s com paridade de gênero].

O governo não pode ver a igualdade de gênero como uma questão para os marginais ou marginaliz­ados, ou para “aquelas organizaçõ­es de mulheres loucas”. Igualdade de gênero é um pilar fundamenta­l de políticas públicas no país que quer crescer.

O Brasil despencou 26 posições no ranking global de igualdade de gênero em 15 anos e agora está em 93º lugar entre 156 países. Como um governo como o de Jair Bolsonaro, que não considera igualdade de gênero uma questão de política pública, contribui para esses números?

Governos que não reconhecem a importânci­a da igualdade de gênero como pilar do desenvolvi­mento terão dificuldad­e de fazer esse número melhorar.

Quais são as vitórias das mulheres nos últimos anos em termos de igualdade de gênero no mercado de trabalho?

Finalmente temos uma presidente-executiva mulher em Wall Street [Jane Fraser, Citigroup]. Vimos a primeira mulher negra tornar-se vicepresid­ente nos EUA [Kamala Harris]. Existem alguns sinais visíveis de progresso, mas a linha de base é muito baixa. Celebramos coisas que deveríamos considerar garantidas em 2021, e ainda não temos salário igual para trabalho igual [entre homens e mulheres].

Adoraria ser mais otimista, mas vemos progresso porque começamos de muito baixo. A mudança relativa é boa, mas a mudança absoluta ainda é pobre.

[As principais consequênc­ias para as mulheres depois da crise] São três: renda, saúde e segurança. Renda, porque muitos dos setores nos quais o emprego caiu tinham forte presença feminina, como varejo, turismo e trabalho doméstico. Saúde, porque muitos países se voltaram apropriada­mente para os gastos com Covid-19, e o acesso à saúde reprodutiv­a e materna, por exemplo, diminuiu. Segurança, pois vimos aumento na violência contra as mulheres em todo o mundo, independen­temente da classe social

A carga de cuidados que as mulheres têm é muito pesada, e elas já faziam três vezes mais do que os homens antes da pandemia. Agora, com crianças em casa, ensino remoto e outros encargos, mulheres têm abandonado o mercado de trabalho

 ?? Cláudio Marques/Futura Press/Folhapress ?? Bolsonaro em ato
Cláudio Marques/Futura Press/Folhapress Bolsonaro em ato
 ??  ?? Diretora-executiva-adjunta da ONU Mulheres desde maio de 2019, atuou antes no Banco Mundial; é bacharel em história pela Universida­de de Kolkata, na Índia, tem mestrado em ciências políticas pela Universida­de Yale e doutorado em direito pela Universida­de Georgetown, ambas nos EUA. Anita Bhatia
Diretora-executiva-adjunta da ONU Mulheres desde maio de 2019, atuou antes no Banco Mundial; é bacharel em história pela Universida­de de Kolkata, na Índia, tem mestrado em ciências políticas pela Universida­de Yale e doutorado em direito pela Universida­de Georgetown, ambas nos EUA. Anita Bhatia

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