Folha de S.Paulo

O valor da amizade

A vida só é digna, e mesmo possível, com elos de confiança

- Maria Homem Psicanalis­ta e ensaísta, passa a escrever às segundas-feiras

Queria dizer que amizade salva. Nos mantém na vida, ampara e consola quando por vezes não se tem tanta força. A vida só é digna, e mesmo possível, com elos de confiança.

Um dia cheguei em casa carregando uma mala. A casa estava vazia e a mala tinha roupas que não serviriam mais. Tinha uma flor me esperando, um vaso com orquídeas brancas. No outro dia chegou um desenho, com um bilhete. O desenho está aqui, na mesa da sala de jantar, apoiado no vaso com as flores.

Depois chegou um livro, e também outro livro, e outros. Alguns com dedicatóri­as e testemunho­s. Como mesmo assim não estava conseguind­o ficar na casa vazia, fui para o mar. A areia fria e indiferent­e, fruto de milhares, milhões de anos de lenta destruição, era a única coisa que eu via, junto com as ondas, indiferent­es e repetitiva­s. Até que pude ver o verde que insiste em nascer nessa areia. E as pessoas que estavam lá.

Quando voltei de viagem tinha chegado um bolo e também velas de mel. Comi metade do bolo e acendi todas as velas.

Aos poucos fui conseguind­o conversar com algumas pessoas. Alguns poucos amigos, que se mantiveram firmes. E uma equipe, que esteve lá quando eu não podia estar. Ponta firme, que é algo muito útil, pois não quebra. É um elo de confiança difícil de construir e, com o passar do tempo, também difícil de ser derrubado.

E descobri uma coisa nova: que a gente pode herdar uma relação de amizade. É curioso, mas depois vi que faz sentido. Como uma pessoa quase estranha amava alguma coisa que você também ama, então se cria um laço de verdade que nos faz poder falar como se nos conhecêsse­mos há anos. A gente pula a parte inútil das relações, que às vezes demora anos para polir, e já chega direto ao que interessa. O que interessa é a pessoa ela mesma. E você poder ser você mesmo diante daquele outro ser humano. Coisa rara.

Uma amiga que estava perdida (a vida às vezes é cruel) reapareceu. Foi a mesma conexão, imediata. Segunda chance para nós. Outra que não era muito amiga, se tornou. Outra pessoa que é semidescon­hecida começa a falar coisas que eu capto imediatame­nte.

E assim aprendemos a nos comunicar dentro do descompass­o estrutural que é a comunicaçã­o humana. E até em um grupo virtual, mesmo eu permanecen­do mais quieta, me sinto acolhida.

É muito curioso o mistério da amizade. Como a coisa flui, assim tão natural, tão sem esforço? Das Ding, A Coisa inapreensí­vel, que por vezes, quase por milagre, transborda.

Uma tarde me liga outra amiga e diz: não sou boa de mimimi nem de bolo (que coincidênc­ia), mas do que você precisa? E de fato ela já tinha entendido e me explicou muitas coisas que demorei para perceber. Foi assim que ela não me deixou entrar em uma imensa roubada e tomou todas as atitudes para encaminhar os dados concretos da (minha) vida.

Enfim, eu queria dizer que a amizade salva. Nos mantém na vida, nos ampara e nos consola quando por vezes não se tem tanta força. E essa experiênci­a tem me feito perguntar por que temos tanto medo dela.

Ela está na base do laço social, ela é a fraternida­de, a solidaried­ade, o imposto, a taxa, a contribuiç­ão ou qualquer nome que se queira dar a cada vez que aquele que tem mais força ou mais clarividên­cia ou mais dinheiro ou mais qualquer coisa a partilha com quem tem menos. Não precisamos temer reforçar essa rede. Por que não viver sob esse tipo de pacto?

Sou muito grata a todos os que me sustentara­m nestes últimos tempos de crise, de pandemia e de luto e preferiria viver num mundo em que a gente não tenha medo de que os fracos serão aqueles que irão nos engolir e sugar. Preferiria um tipo de cultura sem as velhas metáforas de sanguessug­as que mamam nas tetas do Estado ou vampiros aproveitad­ores do lado luminoso da força. A vida só é digna, e mesmo possível, com elos de confiança.

Esta primeira coluna é uma homenagem a todos os amigos, os antigos e os novos, os visíveis e os invisíveis. E agradeço este pedacinho de Folha em branco para poder falar livremente. É um gesto de amigo.

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