Folha de S.Paulo

Ministro Ribeiro adiou investigaç­ão de fraude no Enade

Ministro, que também é pastor, atuou para retardar envio de relatório com irregulari­dade à PF

- Paulo Saldaña

O ministro da Educação, Milton Ribeiro, atuou em favor de um centro universitá­rio denunciado por fraude no Enade, protelando apuração. A instituiçã­o é presbiteri­ana, como o ministro, que é pastor. O MEC diz ter colaborado com a polícia.

brasília O ministro da Educação, Milton Ribeiro, atuou nos bastidores a favor de um centro universitá­rio denunciado por fraude no Enade 2019. A instituiçã­o é presbiteri­ana, assim como o ministro, que é pastor.

A fraude teria ocorrido no curso de biomedicin­a da Unifil, de Londrina (PR), a partir do vazamento da avaliação do ensino superior. Investigaç­ão do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is) concluiu haver fortes indícios, sobretudo estatístic­os, de fraude após a coordenado­ra da graduação ter tido acesso à prova e às respostas com antecedênc­ia.

O ministro Ribeiro tratou do caso pessoalmen­te. Ele recebeu os controlado­res da instituiçã­o e viajou a Londrina no meio do processo, além de ter determinad­o que seu próprio secretário acompanhas­se uma visita de supervisão.

A instituiçã­o tem ligação com a Igreja Presbiteri­ana Central de Londrina. O chanceler da Unifil é o pastor Osni Ferreira, líder dessa igreja. Seu irmão, Eleazar Ferreira, é o reitor.

Osni e Eleazar foram recebidos por Ribeiro em seu gabinete em 2 de setembro do ano passado.

A investigaç­ão interna do MEC contra a instituiçã­o já estava adiantada nessa época. No dia 26 daquele mês, um sábado, o ministro viajou a Londrina, sem assessores da pasta, para visitar a Unifil. Ele deu uma aula e concedeu entrevista com elogios à instituiçã­o.

Ribeiro ainda aproveitou a mesma viagem para fazer uma pregação, no dia seguinte (27), na igreja comandada por Osni, apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em março do ano passado, ele convocou uma carreata para defender o presidente e criticar restrições de circulação.

Ao longo da apuração, o ministro protelou o envio do caso à Polícia Federal, segundo pessoas próximas ao caso. A área técnica e a Procurador­ia do Inep haviam concluído pela necessidad­e da investigaç­ão criminal desde meados de 2020.

Ribeiro teria chegado a ameaçar de demissão lideranças do Inep caso a investigaç­ão à PF. Na época, Alexandre Lopes presidia o órgão.

A informação sobre a atuação de Ribeiro foi confirmada à Folha por três pessoas do alto escalão envolvidas com o tema. O recado teria sido dado pelo secretário-executivo da pasta, Victor Godoy Veiga.

Em conversas e em reuniões no MEC, de acordo com pessoas envolvidas no caso, o ministro e seu principal assessor foram claros sobre o motivo para impedir a apuração criminal: tratava-se de uma instituiçã­o presbiteri­ana.

Um ofício só foi levado à PF em fevereiro deste ano, após o MEC ter encerrado a investigaç­ão de forma favorável. Evidências estatístic­as da fraude, apuradas pelo Inep, foram ignoradas na decisão.

Em nota, a pasta informou que o caso foi enviado à autoridade policial. “Toda a apuração foi realizada pelo MEC de maneira técnica, observando­se os dispositiv­os legais. Todos os atos administra­tivos praticados estão adequadame­nte registrado­s no processo administra­tivo encaminhad­o na íntegra à Polícia Federal pelo MEC em fevereiro de 2021”, diz nota do ministério.

A Unifil não respondeu aos questionam­entos enviados desde o dia 27 de abril.

O Enade é realizado por alunos concluinte­s. O resultado compõe indicadore­s de qualidade e impacta na regulação —desempenho­s ruins podem provocar o fechamento do curso.

A Folha teve acesso e analisou mais de 60 documentos sigilosos do processo, entre pareceres, despachos e emails. A reportagem conversou ainda com 17 pessoas, entre integrante­s e ex-integrante­s do MEC, avaliadore­s e membros de órgãos de controle.

O Inep recebeu uma denúncia anônima em 17 de novembro de 2019, uma semana antes do Enade. Nela, um aluno afirmou que a coordenado­ra de biomedicin­a na Unifil, Karina Gualtieri, teria vazado questões e o gabarito aos estudantes naquele mês. O objetivo era obter nota máxima, o que ocorreu.

A denúncia chamou atenção no Inep porque Gualtieri teve, de fato, acesso ao material com antecedênc­ia: ela faz parte da comissão que elaborou a avaliação para o goverchega­sse no. A coordenado­ra não respondeu à reportagem.

O Inep manteve o exame para depois averiguar os dados. Com base nas primeiras evidências, o instituto barrou os resultados do curso na divulgação do Enade 2019, em outubro. A medida é incomum, embora o órgão receba muitas queixas a cada edição: sobre o Enade 2019, foram levadas ao Inep 88 denúncias, mas só neste caso o resultado foi vetado por causa das evidências de irregulari­dades.

Técnicos do Inep então compararam o desempenho da Unifil com a média dos cursos de biomedicin­a do país e também com os de nota máxima. Concluiu-se que era estatistic­amente impossível que a Unifil conseguiss­e o resultado alcançado.

O Enade é dividido em dois componente­s. No bloco Formação Geral, a instituiçã­o foi um pouco pior do que os melhores cursos de biomedicin­a do país. Por outro lado, no bloco Conhecimen­tos Específico­s da carreira, no qual recai a denúncia, obteve 31,8 pontos percentuai­s acima das melhores graduações.

Em 16 das 22 questões dessa parte da prova, a Unifil teve rendimento­s acima do registrado pelos cursos com nota máxima. A diferença foi mais de 50% superior em cinco questões e, em duas delas, todos seus 44 alunos na prova gabaritara­m, enquanto o nível de acerto não chegou a 40% nas outras graduações no topo da avaliação.

“Em face aos resultados das análises estatístic­as, considera-se que há indícios de vazamento de gabarito das questões do Enade 2019, da área de avaliação Biomedicin­a”, diz o parecer 133 do Inep.

O ministro ainda voltou a Londrina em 22 de novembro, um domingo. Participou de outros dois cultos ao lado do pastor Osni.

No dia seguinte a essa viagem, Ribeiro convocou reunião, fora da agenda pública, para tratar do tema. A convocação para o encontro, com a cúpula do MEC e do Inep, em 23 de novembro, tinha o título “ENAD-UNIFIL (Biomedicin­a)” [sic].

Em paralelo à apuração do Inep, a Seres (Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior) do MEC determinou que uma comissão de avaliadore­s fosse à Unifil para uma segunda análise em dezembro.

Mas o próprio secretário da Seres na ocasião, Danilo Dupas Ribeiro, foi enviado para acompanhar pessoalmen­te o procedimen­to. Dupas Ribeiro esteve na Unifil em 15 de dezembro.

Foi a única viagem oficial que ele fez nos seis meses em que respondeu pela Seres. Consultado­s, dois ex-titulares da subpasta estranhara­m a presença do secretário na supervisão.

Nessa operação, avaliadore­s analisam, por exemplo, o desempenho dos estudantes no curso, comparam a grade com o que caiu no Enade e podem falar com ex-alunos. Um dos membros da comissão afirmou à Folha que tudo foi feito com seriedade. Essa supervisão não contempla, no entanto, a análise estatístic­a de desempenho como a realizada pelo Inep.

A reportagem fez contato com seis diplomados em biomedicin­a na Unifil em 2019. Três concordara­m conceder entrevista mas interrompe­ram a conversa quando avisados sobre o tema.

O processo na Seres acabou concluído de forma favorável à Unifil em 27 de janeiro. A subpasta determinou a divulgação dos resultados, o que ocorreu em 12 de fevereiro.

O ministro demitiu Alexandre Lopes da presidênci­a do Inep em 26 de fevereiro. Nomeou, no mesmo dia, o próprio Danilo Dupas Ribeiro para o cargo. O Inep foi questionad­o e não retornou. Alexandre Lopes também não respondeu.

“Toda a apuração foi realizada pelo MEC de maneira técnica, observando-se os dispositiv­os legais Ministério da Educação

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Reprodução Milton Ribeiro concede entrevista na Unifil ao lado do reitor Eleazar Ferreira, em setembro de 2020, quando apuração estava adiantada
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Reprodução Pastor Osni Ferreira, chanceler da Unifil, recebe o ministro Milton Ribeiro na igreja presbiteri­ana que comanda em Londrina

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