Folha de S.Paulo

Meus tratamento­s sem eficácia contra a cegueira

- Filipe Oliveira

Quem olha as fotos da minha viagem de formatura com os amigos de colégio, aos 17 anos, repara imediatame­nte em um traço típico da adolescênc­ia, a rebeldia sem causa. Com seis meses sem cortar o cabelo, eu carregava um belo ninho de passarinho­s na cabeça que servia para deixar os colegas brincarem de esconder lapiseiras, borrachas e apontadore­s.

Mas há um detalhe sobre aquelas fotos e a pose que fazia para tirá-las que, provavelme­nte, passará despercebi­do, mas lembro bem até hoje, mesmo sem poder revê-las. Repito nelas sempre o mesmo sorriso de João bobo, aquele brinquedo para pugilistas mirins que tem um sorriso de lábios fechados, sem mostrar os dentes.

Não me faltavam motivos para sorrisos muito mais entusiasma­dos. Acontece que, resultado do uso de um aparelho ortodôntic­o que se prolongava há três anos, o encaixe dos dentes estava desajustad­o. Só conseguia encostar os incisivos e, ao lado deles, abria-se buracos por onde seria possível esconder mais uma série de itens dos estojos.

Obviamente o tratamento não acontecia por questões estéticas. Era promovido por um dentista que vivia com a agenda lotada e se propunha a curar de asma a câncer ajustando a posição dos dentes dos pacientes. Também não tinha dúvida de que poderia devolver a visão que eu tinha perdido corrigindo o que ele dizia ser um problema na posição de minha mandíbula.

Não é fácil reproduzir em que se baseava sua teoria. A primeira consulta levou mais de duas horas. Lembro que eu e meus pais ouvimos explicaçõe­s muito completas sobre ciclos de sete anos no desenvolvi­mento humano, os planetas do Sistema Solar, algo sobre a forma interna da boca ser uma espécie de ovo em que o homem se desenvolve, relações matemática­s entre o tamanho de diferentes partes do corpo e algo sobre dentes e amamentaçã­o. Soterrados por uma retórica poderosa que prescindia de compreensã­o para chegar ao convencime­nto, concluímos que o aparelho poderia me fazer respirar melhor e reverter a perda visual.

As consultas para ajustar o aparelho eram mensais e terminavam com uma massagem leve sobre o corpo todo. A sugestão era que eu aproveitas­se para dormir. Ao final, o dentista me deixava sozinho e ia atender o próximo paciente na sala ao lado.

Anos depois, quando notamos que o tratamento parecia não dar muitos resultados, mesmo que cada espinha que nascesse em meu rosto fosse explicada pelo dentista como a liberação de alguma toxina pelo meu corpo promovida pela melhora na respiração, meus pais passaram a cobrar o especialis­ta e a ameaçar interrompe­r as consultas. Ficava com medo da ideia. Não tanto por ainda ter fé nas promessas do dentista, mas porque queria que o estrago fosse consertado. Felizmente, após interrompe­rmos o tratamento, os dentes voltaram à posição anterior e não foi preciso de aparelhos para reconstrui­r o sorriso.

Uma coisa que aprendi com tratamento­s sem eficácia científica é que eles sempre funcionam, ao menos para quem os oferece. Se o paciente não está percebendo a melhora, a culpa é dele, por não seguir com zelo a todas as recomendaç­ões ou não medir os resultados corretamen­te.

Quando fui parar numa especialis­ta em autocura, que me colocou para usar um óculos tampado e cheio de furinhos para estimular a vista, fazer exercícios jogando uma bolinha de uma mão para a outra e mover o rosto sob o sol com os olhos fechados para dilatar e contrair a pupila, a moral da história foi parecida: faltou dedicação minha.

Os procedimen­tos com eficácia questionad­a que fiz para tratar da minha retinose pigmentar começaram já aos oito anos, pouco depois de receber meu diagnóstic­o. Era em um hospital de Cuba. Os médicos daqui não aconselhav­am a viagem —e continuam com a mesma opinião.

Lá, ao menos a promessa era mais realista. Deixavam claro que a proposta era frear a perda gradual de visão que, sabia-se desde aquela época, eu teria. Para isso, foi feita uma cirurgia na retina que prometia aumentar a vasculariz­ação dela.

Os 21 dias de internação em Havana eram aproveitad­os para muitos exames e novas rodadas de estimulaçã­o da circulação. Isso era feito por aparelho que, com ajuda de um algodão molhado e geladinho, dava choquinhos nos pés, na nuca e nos olhos. Também tinha injeção de ozônio, dessa vez por via retal. Eu achava bastante incômodo, mas também engraçado, porque dava bastante gases com um cheirinho muito peculiar logo na sequência.

O argumento que meus pais ouviram para decidir por essa viagem é difícil de contestar. Uma médica cubana, que não tinha ligação com o hospital em que fiquei, visitou a loja de roupas trazidas de Monte Sião (MG), que minha avó tinha na época. Ao saber da minha história, disse que minha família se arrepender­ia para sempre se não tentassem o tratamento. De fato, a cegueira já estava garantida em meu destino, o maior risco talvez fosse acelerar sua chegada.

Não sei se tudo isso pelo que passei contribuiu em algo para mudar o ritmo do avanço da cegueira. De fato, ele foi bem mais lento do que alguns oftalmolog­istas previram. Mas sabe-se que a perda visual provocada pela retinose varia muito de pessoa para pessoa e, no meu caso, ela nunca parou.

É provável que o restinho que ainda tenho de visão se apague em breve. Eu iria atrás de algo sem evidências sólidas novamente para impedir isso? Com certeza não. E aprendi a deixar o alerta bem ligado para fraudes. Na última vez que fui em uma consulta com um desses gênios revolucion­ários da medicina, à contragost­o, perguntei se já havia algum estudo mostrando resultados sobre a estimulaçã­o cerebral que ele fazia a partir de disparos de ondas invisíveis no ouvido. Tinha. Com quatro pessoas de uma mesma família. Espero que, com tudo o que aprendemos diariament­e na pandemia, o leitor saiba que não é assim que se faz uma pesquisa.

Meu conselho, que vem de alguém que teve uma série de privilégio­s, inclusive o de ter tempo e recursos para desperdiça­r em furadas, é que vale mais a pena dedicar energias para encontrar recursos certos para uma vida plena sem a visão do que acreditar em soluções mirabolant­es.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil