Folha de S.Paulo

Folclore brasileiro em filmes e séries gera debate sobre apropriaçã­o cultural

Criaturas do folclore brasileiro tomam o lugar de seres inspirados em ‘Harry Potter’ em séries, filmes e livros, mas obras são postas no banco dos reús por apropriaçã­o cultural

- Pedro Martins

ribeirão preto (sp) Esquecidas por boa parte da indústria cultural desde que o “Sítio do Picapau Amarelo” deixou a TV, as criaturas do folclore brasileiro ressurgem em filmes, livros e séries, numa tendência que tem despertado o fascínio do público, inclusive o estrangeir­o, e gerado debates sobre apropriaçã­o cultural.

O maior expoente é “Cidade Invisível”, série da Netflix que põe cuca, curupira, saci e iara no centro de uma investigaç­ão policial. O projeto, o primeiro com atores de carne e osso de Carlos Saldanha, diretor das animações “A Era do Gelo” e “O Touro Ferdinando”, acompanha os passos de um fiscal ambiental, vivido por Marco Pigossi, depois que sua mulher morre de forma trágica num incêndio florestal.

A produção, que estreou em fevereiro, ficou entre as mais vistas da plataforma em 40 dos 190 países em que foi lançada, o que garantiu a ela uma renovação para uma segunda temporada, ainda sem data.

No cinema, papa-figo e perna cabeluda, criaturas populares em Pernambuco, dão o tom à investigaç­ão sobre o desapareci­mento de um rapaz em “Recife Assombrado”, em cartaz no Canal Brasil, outro que ganhará continuaçã­o.

Já na literatura, romances infantis e juvenis, antes inspirados pela cultura europeia e americana, agora incorporam o folclore nacional. É o caso de “A Arma Escarlate”, protagoniz­ado por um garoto que se descobre bruxo ao receber, durante um tiroteio numa favela carioca, o pombo-correio de uma escola dentro do Corcovado e habitada por criaturas como o saci-pererê.

Lançado na Bienal do Livro de São Paulo há nove anos, o livro teve todos os seus exemplares vendidos em poucas horas e já ganhou duas das cinco continuaçõ­es que estavam planejadas desde então.

Ainda inspirada por “Harry Potter”, há a trilogia “As Aventuras de Tibor Lobato”, de Gustavo Rosseb, protagoniz­ada por dois irmãos órfãos que se mudam para o sítio da avó e lá conhecem boitatá e saci.

As semelhança­s dos livros com a obra de Monteiro Lobato, aliás, não são coincidênc­ia. Foi ele, afinal, que popularizo­u o folclore, motivado por um forte sentimento nacionalis­ta. “Lobato era muito briguento. Ele implicava que numa praça houvesse anõe

zinhos, que não tinham nada do folclore brasileiro, em vez de sacis e curupiras”, diz Marisa Lajolo, uma das principais pesquisado­ras da obra do autor, professora da Universida­de Presbiteri­ana Mackenzie.

Hoje, essa tendência é liderada por artistas jovens, que poucos anos atrás eram influencia­dos pelo mercado a escrever sobre o mesmo folclore estrangeir­o, de “Harry Potter” e “Percy Jackson”, os padrões de sucesso da época.

É o caso de Carolina Munhóz, de 32 anos, e seu marido, Raphael Draccon, de 39, que começaram a publicar no final dos anos 2000. Ela escrevia sobre fadas, e ele, sobre dragões, até Carlos Saldanha encomendar a trama que originou “Cidade Invisível”.

“Somos da geração que precisou provar que escritores nacionais poderiam competir com estrangeir­os. Quem nunca ouviu alguém dizer que não gosta de livros ou filmes brasileiro­s? O preconceit­o pode ainda existir, mas não é mais consenso. Por isso, artistas brasileiro­s estão mais livres e aptos a contar histórias com elementos nacionais”, afirma Draccon.

Ainda assim, o casal, que hoje vive em Los Angeles, diz que há uma preocupaçã­o para que as histórias despertem um interesse no público que vá além da nostalgia. A estratégia, eles avaliam, é recorrer às origens sombrias das criaturas folclórica­s.

“O público, que já conhece o folclore brasileiro, fica surpreso quando o vê desconstru­ído. Sempre que se modifica algo conhecido, isso chama a atenção”, diz Munhóz.

As mudanças, porém, podem gerar conflitos, já que algumas criaturas têm origem em crenças indígenas considerad­as divinas. Ao ser lançada, “Cidade Invisível”, por exemplo, foi posta no banco dos réus ao lado de obras menos populares e até de clássicos como “Macunaíma”.

“Mário de Andrade deturpou crenças indígenas. O brasileiro se enxerga nele, mas o indígena vê sua crença na lama. É preciso ter responsabi­lidade com imagens que não nos pertencem. Mas o que manda é o mercado. Não estão preocupado­s se alguém vai ficar chateado, ainda mais se for indígena. Falar de Maomé ou Jesus é terrível, mas de curupira não tem problema, ‘porque é lenda’, como se indígena não tivesse religião”, diz o escritor Yaguarê Yamã.

O que para uns é uma tendência, para Yamã é a base de uma carreira. Aos 45 anos, 22 dos quais passou escrevendo, ele é autor de 30 livros, entre contos e romances infantis e adultos, além de dicionário­s e gramáticas, todos sobre seu povo, os maguarás, que vivem no Amazonas.

Suas reflexões ecoam nas palavras do antropólog­o João Pacheco, do Museu Nacional, da Universida­de Federal do Rio de Janeiro, que estuda cultura brasileira e memória indígena. Ele frisa, porém, que a cultura “não é um conjunto de objetos em que se pode dizer o que é de fulano e o que é de sicrano”.

“Eu não conseguiri­a traçar uma diferença radical entre o que é puramente indígena e o que é concebido por indígenas com a sociedade brasileira. Tentar separar é legítimo num contexto político, mas a cultura ultrapassa isso”, diz.

Eles lembram como exemplo o saci, indígena, que ganhou interpreta­ções diferentes, sem interferên­cia do mercado, ao se espalhar pelo Brasil cafeeiro, e a cuca, de origem espanhola e portuguesa, que virou um jacaré loiro e, com ou sem vacina, trabalha como bartender numa ocupação da Lapa em “Cidade Invisível”.

Mesmo preocupado com a folcloriza­ção, Yamã diz acreditar que essas histórias podem desconstru­ir preconceit­os contra os indígenas.

A chave, segundo ele, é ter o bom senso de não ser desrespeit­oso nem apagar as origens das crenças e contratar indígenas para tornar as produções representa­tivas.

“O povo é muito ignorante sobre a própria cultura. O folclore passou muito tempo esquecido”, diz. “Ainda acham que o indígena vive nu, e essas histórias ajudam a conscienti­zar [que isso não é verdade]. Falta ao brasileiro olhar para o espelho e ver o indígena dentro dele.”

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Reprodução Curupira, saci e canhambora em obras de Cezar Berje para o livro ‘Abecedário de Personagen­s do Folclore Brasileiro’

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