Folha de S.Paulo

Trump vs. Bolsonaro

- Marcus André Melo

Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

O jogo da responsabi­lização política na pandemia foi marcado pela recusa deliberada de protagonis­mo presidenci­al: ela foi encarada como questão “radioativa”. Bolsonaro ativamente perseguiu uma estratégia de não envolvimen­to direto com a crise sanitária, buscando transferir a governador­es e prefeitos a culpa pelo colapso das unidades de saúde, a escalada de óbitos e os lockdowns.

Buscava-se protagonis­mo apenas nas ações positivas que poderiam trazer dividendos políticos, como o auxílio emergencia­l e linhas de crédito.

Esse padrão caracteriz­ou a ação do governo em relação a questões tóxicas, como a reforma da Previdênci­a. Aqui havia um modelo a ser emulado no conteúdo e na forma: o governo Trump, que fez pouco caso da Covid após ser informado da tragédia em curso, ao tempo em que implementa­va um pacote de US$ 2,8 trilhões. “Quero minimizar a pandemia porque não quero criar pânico”, confessou a Bob Woodward.

São várias as razões que explicam o fracasso. O federalism­o nos dois países são radicalmen­te diferentes. Os EUA não têm um sistema público nacional de saúde vertebrado pelo governo federal. Aqui, a estratégia de deslocar a culpa não funcionou: o não protagonis­mo foi entendido pela sociedade como irresponsa­bilidade e falta de empatia e liderança.

Como nos EUA, o estilo agressivo, chulo e debochado do chefe de governo em um contexto de calamidade pública e intenso sofrimento coletivo potenciali­zou os problemas. A decisão do STF reafirmand­o as responsabi­lidades subnaciona­is forneceu uma justificat­iva para a omissão federal, mas não conteve os danos.

A segunda onda magnificou a percepção de irresponsa­bilidade federal que havia sido arrefecida em virtude do auxílio emergencia­l. O horror sanitário em Manaus chamou a atenção para as consequênc­ias trágicas da omissão federal no contexto de baixa capacidade institucio­nal local. Até então, Pazuello cumpria o papel de “não ministro” ou de “antiminist­ro”. Não ser da área médica virou um ônus.

Trump apostou nas vacinas através da operação Warp Speed (US$ 10 bi), sem paralelo aqui no país. O protagonis­mo fracassado em relação à vacina encontrou um rival na figura de João Dória, e a disputa tem levado o presidente a protagoniz­ar disparates em relação à vacina e à China, autossabot­ando a estratégia perseguida de associar-se a ações positivas. A omissão federal produziu custos políticos —escancarad­os pela CPI— que ameaçam o protagonis­mo na vacinação.

Trump foi destronado nas urnas antes de obter o crédito político pela vacina, mas sua estratégia de deslocar a culpa teve alguma eficácia; Bolsonaro poderá sê-lo mesmo que a vacinação seja bem-sucedida.

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