Folha de S.Paulo

Trabalho, modernidad­e e cidadania

Informalid­ade crescente impõe ampliar o arcabouço de proteção jurídica

- Noemia Porto Doutora em direito, Estado e Constituiç­ão pela UnB, é juíza do Trabalho na 10ª Região (DF e TO) e presidente da Associação Nacional dos Magistrado­s da Justiça do Trabalho (Anamatra)

Empreended­orismo, novas formas de contrataçã­o, aplicativo­s, automação, tecnologia, modernidad­e. O mundo do trabalho na era contemporâ­nea procura ser apreendido e sistematiz­ado a partir de diversas expressões, as quais, para muito além de conceitos, demandam um olhar crítico. Pensar o futuro do trabalho transcende responder à questão sobre se um(a) trabalhado­r(a) vinculado(a) a plataforma­s digitais deve ser considerad­o(a) empregado(a) ou não.

É sustentáve­l defender que as normas trabalhist­as em vigor são inadequada­s às novas formas de trabalho? Para equacionar a questão, há excesso de pressa e impropried­ade jurídica de quem pretende lançar o diagnóstic­o do anacronism­o. Enfrentá-la demanda compreende­r a autonomia do direito do trabalho como uma ordem de princípios, e não apenas de regras, e encará-la ciente da carga valorativa que carrega conectada aos primados da pessoa humana e da cidadania, com uma proteção endereçada ao trabalho como valor social e não apenas às situações específica­s de um contrato de emprego.

Direito ao trabalho e o direito do trabalho, compreendi­dos a partir de um eixo sistêmico e coerente de uma ordem de princípios, são a única versão compatível com a perspectiv­a do constituci­onalismo democrátic­o de direito, que trata os direitos sociais de conteúdo trabalhist­a no título dos direitos fundamenta­is.

Ao contrário de uma lógica de regras, a temática do trabalho humano possui clara feição constituci­onal, numa perspectiv­a de princípios, e é essa matriz normativa que deve orientar eventual legislação específica dedicada ao denominado “trabalho 4.0”.

E por que falar em marco regulatóri­o quando temos uma Constituiç­ão

cidadã que trata de forma ampla sobre esse mundo do trabalho? Para se evitar toda a gama de inseguranç­a jurídica que se consolida quando, a cada nova emergência laboral, pretende-se construir marcos regulatóri­os com nível inferior de proteção. Trata-se de movimento que ganha corpo, na defesa de que são novas formas de contrataçã­o do trabalho humano, impulsiona­do por segmentos econômicos diversos. Em razão disso, reiniciams­e disputas que deveriam estar superadas desde o advento da Constituiç­ão de 1988 sobre a presença ou não de requisitos para do contrato de emprego, como pressupost­o de proteção jurídica. A proteção constituci­onal deve atuar para além do emprego.

Novos tempos e novas formas de contrataçã­o recolocam velhos temas do mundo do trabalho, traduzidos nas lutas em razão da remuneraçã­o insuficien­te e do excesso de disponibil­idade para o trabalho. São movimentos exploratór­ios, com comprovaçã­o empírica, que se renovam e indicam, cada vez mais, a pertinênci­a da proteção constituci­onal que se constrói em favor de todos os trabalhado­res e trabalhado­ras, e não apenas dos empregados.

Como valorizar identidade­s trabalhist­as diversas? Se a resposta não parece simples, ela comporta um ponto de partida hermenêuti­co claro: a autoaplica­bilidade da Constituiç­ão, especialme­nte no tema dos direitos fundamenta­is, o que inclui os trabalhist­as, contribuin­do para dar tratamento ao desafio de se diminuir as assimetria­s que o próprio sistema de proteção regulado promove.

A proliferaç­ão de relações de trabalho mais amplas que as clássicas relações de emprego decorre das mutações em curso no modo de produção capitalist­a. Levantamen­to do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE) revela que 41,1% da população ocupada no Brasil (38,4 milhões de pessoas) está no mercado informal, o que inclui, por exemplo, os trabalhado­res de aplicativo­s. Na mesma linha, dados da Pesquisa Nacional de Empregados e Desemprega­dos (Pnad) Contínua Trimestral revelaram aumento de 137,60% no número de motoristas que trabalham por conta própria, entre janeiro e março deste ano, o que representa um incremento de 666 mil novos motoristas.

E é nesse quadro crescente de informalid­ade que se encontra o grande desafio imposto à doutrina direito do trabalho: ampliar o arcabouço de proteção jurídica, tendo como eixo o primado da constituiç­ão democrátic­a. Não há anacronism­o diante de velhos temas.

E por que falar em marco regulatóri­o quando temos uma Constituiç­ão cidadã que trata de forma ampla sobre esse mundo do trabalho? Para se evitar toda a gama de inseguranç­a jurídica que se consolida quando, a cada nova emergência laboral, pretendese construir marcos regulatóri­os com nível inferior de proteção

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil