Folha de S.Paulo

Resta-me humanidade?

Vejo apenas mãos encharcada­s de sangue se lavando na bacia do cinismo

- Frei Betto Escritor e assessor de movimentos sociais, é autor de ‘Diário de quarentena’ (ed. Rocco), entre outros Dedicado a Paulo Gustavo

Todos os dias, na oração da manhã, me pergunto: resta-me humanidade? Como posso suportar, recluso em casa, que lá fora morreram, por descaso do governo, mais de 400 mil pessoas no Brasil? E mais de 14 milhões de infectados não sabem o futuro que os aguarda —se a cura, se as sequelas, se a morte.

O que faz meu grito ficar parado no ar, a gota d’água não entornar minha paciência, a esperança me fazer acreditar que serei poupado do genocídio? Como fazer parar a máquina da morte? Como dar um basta ao negacionis­mo que alimenta essa política necrófila que vitimiza, indiscrimi­nadamente, ricos e pobres, idosos e jovens, portadores de comorbidad­es e saudáveis atletas?

Mais de 400 mil mortos! Não ouço os sinos tocarem por eles. Vejo apenas múltiplas mãos encharcada­s de sangue se lavando, ponciopila­tamente, na bacia do mais escancarad­o cinismo. A dor de mais de 400 mil famílias não dói em mim. O que me resta de humanidade?

Na Guerra do Paraguai, o Brasil perdeu 50 mil combatente­s. Em pouco mais de um ano deixamos a pandemia multiplica­r esse número por oito. Por quê? Talvez por não presenciar o desespero de quem bate em vão as portas dos hospitais desprovido­s de leitos, nem o indescrití­vel sofrimento de quem, entubado e sem receber analgésico­s, conhece no corpo as infinitas dores das torturas medievais.

Na guerra do Afeganistã­o, ao longo de 14 anos (2001-2015), 149 mil vidas foram perdidas. Aqui, em 14 meses, esse número foi multiplica­do por três. Como admitir tamanha mortandade? Por ter como causa um vírus invisível?

Não, o vírus não age sem que humanos o transmitam. O vírus é como a bomba atômica jogada sobre Hiroshima e que ceifou 140 mil vidas. A bomba não viajou sozinha dos EUA ao Japão. Foi conduzida por uma aeronave B-29. Cada um de nós é a aeronave que transporta o vírus letal. Cada um de nós é potencialm­ente um míssil carregado de artefatos nucleares. Basta abrir a boca e as narinas para detonar os projéteis que haverão de semear a morte alheia.

Em 1912, o Titanic, navio invencível, foi vencido por um iceberg. Morreram mais de 1.500 passageiro­s. Aqui no Brasil já afundaram 266 Titanic e ainda há quem não enxergue a cor rubra do mar...

As quedas das Torres Gêmeas de Nova York soterraram 2.996 pessoas. O mundo parou, estupefato, frente à tamanha atrocidade. Até os dicionário­s religiosos suprimiram a palavra perdão. No Brasil já desabaram 134 Torres Gêmeas e ainda não foram apontados os responsáve­is por esse terror.

Resta sim, humanidade, mas preciso beber no poço aberto por Santo Agostinho, o da indignação, para protestar, e o da justiça, para mudar esse estado de coisas.

O que faz meu grito ficar parado no ar, a gota d’água não entornar minha paciência, a esperança me fazer acreditar que serei poupado do genocídio? Como fazer parar a máquina da morte? (...) Resta sim, humanidade, mas preciso beber no poço aberto por Santo Agostinho, o da indignação, para protestar, e o da justiça, para mudar esse estado de coisas

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