Folha de S.Paulo

Exército domina vida civil na cidade mais indígena do país

Em São Gabriel do Cachoeira (AM), acidente com militar prejudicou hospital

- Fabiano Maisonnave

São Gabriel da Cachoeira (AM) Às 20h30 do dia 30 de janeiro, enquanto a cidade amazonense de São Gabriel da Cachoeira, sob toque de recolher, sofria a segunda e mais mortífera onda de Covid-19, o motorista de um sedan Hyundai HB20S invadiu a contramão e se chocou contra um poste, que caiu atravessad­o na avenida.

“Com certeza, estava bêbado. Saiu do carro com uma lata de cerveja na mão e foi embora andando, nem olhou pra trás”, disse à Folha Tomé Gomes, 63, dono de um pequeno bar a alguns metros do acidente. “Não fosse o poste, ele teria matado a gente.”

Imediatame­nte, faltou luz em São Gabriel —inclusive no Hospital de Guarnição, único da cidade, onde havia 29 pacientes internados, 19 deles com Covid. A unidade é uma das oito organizaçõ­es militares do município.

Segundo relatos, como o gerador próprio era insuficien­te para toda a demanda, profission­ais de folga foram chamados para ministrar oxigênio de forma manual. Após dois dias, o número de mortos pelo coronavíru­s no município do Amazonas, segundo boletim local, saltou de 75 para 80.

Apesar da gravidade do acidente, a Polícia Civil não deteve o motorista nem abriu uma investigaç­ão na época. O perfil do infrator ajuda a explicar: ele era militar.

A condução do caso é ilustrativ­a de como o Exército opera em São Gabriel da Cachoeira, onde hoje é comandado pelo general Alexandre Ribeiro de Mendonça.

No município com maior população indígena do país, são os militares que concentram o poder econômico, fiscalizat­ório, das armas e logístico, além de administra­r o único hospital.

Pelo Censo 2010 do IBGE, 29 mil pessoas na cidade eram indígenas, ou 76,6% do total, e cerca de 11 mil residiam no perímetro urbano.

A presença militar na região de São Gabriel começou ainda no século 18, se consolidou durante a ditadura de 1964-85 e ganhou corpo depois da redemocrat­ização.

No município de tamanho comparável ao da Inglaterra, o Exército possui sete pelotões de fronteira, dos quais seis localizado­s dentro de terras indígenas. Foram criados entre os anos de 1984 e 2003.

Na noite de 30 de janeiro, depois do acidente que levou à queda do poste e da energia, o interior do único hospital da cidade ficou abafado devido à falta de ar-condiciona­do, aumentando o estresse de pacientes e funcionári­os. A energia só foi restabelec­ida por volta da meia-noite.

Na manhã do dia 31, um domingo, houve falta de luz das 6h30 às 10h para a troca do poste, segundo a empresa Amazonas Energia. Até o meio-dia, dois pacientes que lutavam contra a Covid haviam morrido.

Um boletim de ocorrência atípico só seria feito 40 dias depois, por iniciativa da Amazonas Energia, que está cobrando os prejuízos de forma administra­tiva.

A Folha apurou que o veículo acidentado pertence ao capitão do Exército Ygor Vinicius Neves Oliveira, do Comando de Fronteira Rio Negro e 5º Batalhão de Infantaria de Selva (CFRN/5º BIS).

No dia em que a reportagem esteve na delegacia de São Gabriel, em meados de abril, a explicação foi de que, por se tratar de um oficial do Exército, o caso estava fora da sua alçada, embora tudo indique que o acidente tenha ocorrido fora da atividade funcional, portanto, na esfera da Justiça comum.

A reportagem não conseguiu contato direto com Ygor, só com o CMA (Comando Militar da Amazônia) —que não comentou o caso.

No Detran de Mato Grosso, onde o veículo está cadastro, aparecem quatro multas por excesso de velocidade, mas a ocorrência de São Gabriel não está registrada.

“É uma irresponsa­bilidade muito grande, sobretudo no cumpriment­o dos decretos locais. Tinha-se uma restrição muito grande na época. É um ato criminoso que acarretou em diversas mortes”, afirma o presidente da Foirn (Federação das Organizaçõ­es Indígenas do Rio Negro), Marivelton Barroso.

“Há muitos casos de abuso de autoridade documentad­os”, afirma a antropólog­a Fabiane Vinente dos Santos, que morou em São Gabriel na infância e é autora de uma tese de doutorado sobre a relação entre um Pelotão Especial de Fronteira e o povo tukano, na região de Pari-Cachoeira.

“Essa blindagem que o Exército tem em relação a problemas que ocorrem é muito grave porque acaba dando elementos para que não se considere a presença tão positiva.”

Questionad­o sobre o caso, o comandante militar da Amazônia, general Guilherme Teophilo Gaspar de Oliveira, disse à Folha, via email: “O militar envolvido no acidente automotivo foi punido com prisão, conforme o Regulament­o Disciplina­r do Exército”. Ou seja, a ocorrência não foi reportada às autoridade­s civis.

Durante cinco dias, a reportagem tentou entrar em contato com o Ministério Público Militar em Manaus por telefone, email, WhatsApp e Ouvidoria, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

A reportagem localizou parentes de dois pacientes que morreram no hospital horas após a queda de energia, mas nenhum quis dar entrevista.

O único envolvido que falou abertament­e foi o dono do bar próximo ao acidente, um exgarimpei­ro conhecido na cidade pelo apelido de Pincel. Ele disse que o motorista buscou o carro só no dia seguinte.

Sobre a falta de luz no hospital, o CMA afirma que o apagão durou quatro horas e meia, mas que não houve prejuízo na atenção aos pacientes internados. Por se tratar de um problema recorrente na cidade, causado principalm­ente por eventos climáticos, o hospital já estaria preparado.

O CMA diz que só houve uma morte dentro do hospital no dia do apagão, não relacionad­a à queda de energia.

“Como o Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira possui um gerador de energia elétrica e uma usina de oxigênio, além de estoque de cilindros de oxigênio (…), não houve nenhum prejuízo ao atendiment­o normal e rotineiro dos pacientes internados. Dessa forma, apesar de ter havido o registro de um óbito no referido dia, o mesmo nada teve a ver com a falta de energia momentânea”, diz o CMA.

Brigada na Cabeça do Cachorro tem 40% de indígenas

A presença militar na região de São Gabriel no século 18 começou com a entrada das “tropas de resgate”, para captura e escravizaç­ão de indígenas.

Mas a militariza­cão de fato da região, também conhecida como Cabeça do Cachorro, só ocorreu a partir da ditadura militar, quando a Amazônia passou a ser vista como um “vazio demográfic­o” a ser ocupado, desconside­rando os povos indígenas e tradiciona­is.

Depois da redemocrat­ização, esse processo de militariza­ção aumentou, em parte para evitar que o conflito com a guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucion­árias da Colômbia) respingass­e no Brasil.

Em 2004, com a transferên­cia do comando da 2ª Brigada de Infantaria Motorizada de Niterói (RJ) para para São Gabriel da Cachoeira, a guarnição passou a contar com um general permanente. Um deles foi o atual vice-presidente, Hamilton Mourão.

Em uma região com tanta presença militar e de maioria indígena, 19 de abril tem uma importânci­a singular por ser a data de celebração tanto do Dia do Índio quanto do dia do Exército.

Neste ano, o ponto alto foi a reinaugura­ção da maloca Casa do Saber da Foirn, que representa 23 povos originário­s. Na mesa de autoridade­s estava o general Alexandre Mendonça.

Anfitrião do evento, assistido principalm­ente por representa­ntes de associaçõe­s indígenas que compõem a Foirn, o líder Marivelton Barroso, do povo baré, fez um discurso com vários recados ao convidado ilustre.

Ele lembrou a perseguiçã­o contra líderes indígenas da região nos anos 1970 e 1980, reclamou da crescente inseguranç­a nas Terras Indígenas do rio Negro e aludiu à falta de oficiais indígenas no Exército.

“[A Foirn] faz parte de uma trajetória do movimento indígena do rio Negro desde a época da ditadura militar, quando foi um desafio para os nossos antepassad­os criar essa organizaçã­o. Nossas lideranças eram perseguida­s e até ameaçadas de serem surradas” disse Barroso, usando o termo “ditadura”, rechaçado pelo Exército e pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que perdeu a eleição na cidade em 2018.

O principal líder indígena do rio Negro também fez alusão ao aumento da inseguranç­a. “Há receio de narcotráfi­co passando, o consumo de bebida alcoólica também. A gente vê casos de homicídios, um atrás do outro”, disse Barroso.

A Foirn critica o fechamento, em fevereiro, do posto de controle e inspeção na Ilha das Flores, um local de passagem obrigatóri­a para os barcos.

Para a entidade, isso facilitou a entrada ilegal de bebida alcoólica nas comunidade­s indígenas, aumentando a violência ligada ao consumo, além de diminuir a pressão sobre o narcotráfi­co.

Questionad­o via sobre o fechamento, o general Guilherme Teophilo Gaspar de Oliveira (comandante militar da Amazônia) afirmou que “fatores operaciona­is levaram à decisão por modificar a forma de atuação na área, priorizand­o executar ações inopinadas e intermiten­tes, não apenas de controle de inspeção fluvial, mas também de outras técnicas operaciona­is”.

O comandante do CMA disse que as tropas continuam operando na região da ilha das Flores e que, no dia 11 de fevereiro, apreendera­m ali 1.145 kg de maconha do tipo skank, provavelme­nte vinda da Colômbia.

Barroso mencionou a falta da presença de indígenas na cúpula do Exército: “São Gabriel da Cachoeira e o rio Negro têm de ser assumidos por essa maioria indígena. Seja prefeito, vereadores… Só não dá pra ser general”, disse, arrancando risos da plateia. Desta vez, o general convidado reagiu: “Se tiver mérito…”.

Cerca de 40% da brigada comandada pelo general Alexandre Mendonça é indígena. Todos os anos, centenas de jovens se alistam no Exército, a principal oportunida­de de emprego no município, onde apenas 5,9% estavam ocupados em 2018, segundo o IBGE.

No entanto, não há registro de oficial de carreira do Exército vindo de um dos 23 povos da região.

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Lalo de Almeida-5.out.19/Folhapress Indígenas da comunidade Ya Mirim, em São Gabriel do Cachoeira (AM), tomam banho em rio
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Divulgação Amazonas Energia Carro derruba poste em São Gabriel do Cachoeira, em 30 de janeiro

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