Folha de S.Paulo

O eterno retorno de Netanyahu

Primeiro-ministro amarrou Israel ao seu destino pessoal

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

As cenas de violência em Jerusalém, com cidadãos árabes israelense­s sendo impedidos de circular pelas autoridade­s, manifestan­tes palestinos e policiais entrando em confronto dentro da mesquita de Al-Aqsa, e movimentos racistas desfilando pelas ruas, são o retrato de um país tensionado ao extremo por anos de populismo.

Encurralad­o entre as negociaçõe­s pós-eleitorais do campo conservado­r e os seus incontávei­s rolos judiciais, Binyamin Netanyahu recorreu à velha estratégia de se omitir para depois se posicionar como o único anteparo ao caos. A convergênc­ia de eleições na Palestina, de decisões judiciais sobre as expulsões de palestinos em Sheikh Jarrah, um bairro de Jerusalém Oriental, e o nervosismo inerente à pandemia tinham tudo para tornar o ramadã deste ano particular­mente explosivo.

Netanyahu, que apesar do discurso pirômano nunca abdicou de sua promessa fundadora de impedir a todo o custo uma nova Intifada, desaparece­u do espaço público para dar um aperitivo de como seria Israel sem a sua liderança. Agora, ele opera para o seu rival Naftali Bennett fracassar na tentativa de formar um novo governo e mergulhar o país na quarta eleição em dois anos.

Esse ciclo de autodestru­ição da política israelense é a maior obra de Netanyahu. No poder desde 2009, ele massacrou a democracia israelense para salvar a sua dinastia política. À imagem de um Alberto Fujimori, radicalizo­u a sociedade estimuland­o a entrada de movimentos extremista­s no Parlamento, minou a legitimida­de do sistema partidário saturando a população com uma sucessão de processos eleitorais e sequestrou o poder público para se salvar das investigaç­ões judiciais.

A transforma­ção de Israel sob Netanyahu também teve implicaçõe­s profundas na sua inserção internacio­nal. Duas semanas atrás, a Human Rights Watch afirmou, numa decisiva mudança de paradigma, que a política do governo de “dominação de judeus israelense­s sobre palestinos” constitui um crime contra a humanidade de Apartheid e perseguiçã­o. Essa reviravolt­a sinaliza uma mudança de rumo nas relações entre as potências ocidentais e Israel.

A ONU subiu o tom com o aviso sobre um possível “crime de guerra” nas expulsões de Sheikh Jarrah, e a administra­ção Biden parece aguardar ansiosamen­te pela derrocada de Netanyahu para elencar a sua nova política para o Oriente Médio.

Mas o eterno premiê, ciente de que a deriva autoritári­a poderia criar problemas com os aliados do Atlântico Norte, já tomou todas as precauções para consolidar as conquistas diplomátic­as obtidas na era Trump. Nos últimos anos, Israel, completame­nte dependente dos Estados Unidos no quesito militar, operou um ousado e bem-sucedido realinhame­nto da sua política externa, caracteriz­ado pela expansão da sua zona de influência na África e pela aproximaçã­o com as autocracia­s dos Emirados Árabes Unidos.

Para se perpetuar no poder, Netanyahu amarrou o futuro de Israel ao seu destino pessoal.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil