Folha de S.Paulo

Oásis de ciência na África pesquisa vacina para malária

- Fabio Zanini

são paulo A maior esperança da ciência para vencer uma das doenças que mais atingem regiões pobres do planeta vem de um país normalment­e associado a miséria e instabilid­ade política.

Sem acesso ao mar e na fronteira sul do deserto do Saara, Burkina Fasso, no oeste da África, tem o sétimo pior índice de desenvolvi­mento humano entre 189 países, segundo dados da ONU de 2020.

Em um país com taxa de alfabetiza­ção de apenas 41%, um oásis que desenvolve ciência de ponta foi peça-chave na divulgação, em 23 de abril, da mais promissora vacina contra a malária já testada.

Publicados na revista britânica The Lancet, os resultados preliminar­es mostraram eficácia de 77% em vacinas aplicadas em 450 crianças de Burkina Fasso, índice maior que o de esforços anteriores, que não passavam de 55%.

O estudo é liderado pela Universida­de de Oxford e pela pouco conhecida Clinical Research Unit (Crun), centro de pesquisa em Nanoro, a 90 km da capital, Uagadugu.

“Este é sem dúvida o momento na ciência em que o botão do entusiasmo é ligado e nós sentimos que estamos a alguns passos do fim de nossa jornada”, diz Halidou Tinto, 52, chefe dos pesquisado­res no país africano e diretor da clínica, à Folha por email.

A tão aguardada vacina contra uma doença que atingiu 229 milhões de pessoas no mundo em 2019 e causou 409 mil mortes ainda tem um bom a caminho a percorrer.

Começa em breve a última etapa da pesquisa, a chamada fase 3, coordenada pela Crun.

Serão 4.800 crianças, entre 5 e 36 meses de idade, submetidas a doses da vacina experiment­al, chamada de R21, em quatro países africanos: Quênia, Mali e Tanzânia, além da própria Burkina Fasso.

A ideia é testar o imunizante em condições de transmissã­o diversas. Só aí será possível saber sua real eficácia.

Nos cálculos de Tinto, a fase 3 deve levar 24 meses, e se der certo uma vacina estaria disponível em até quatro anos.

A R21 não é exatamente nova, diz Tinto. A vacina em teste é uma versão aprimorada da RTS,S, até agora a principal aposta da OMS.

O ponto fraco da RTS,S é a baixa efetividad­e, sobretudo em crianças de até cinco anos de idade, grupo que responde por dois terços das mortes.

São necessária­s quatro doses para uma proteção de 40%, dos 50% considerad­os o mínimo aceitável.

A R21 usa como antígenos proteínas em estágio inicial do parasita Plasmodium falciparum, causador da doença, que é transmitid­a por mosquitos.

Isso ofereceu uma resposta mais efetiva na produção de anticorpos do que a versão anterior, da RTS,S, que usa proteínas da hepatite B em 80% de seus antígenos.

Ainda há dúvidas se a vacina seria efetiva contra variantes da malária encontrada­s em outras partes do mundo, como no Brasil, já que os testes foram feitos apenas na África.

A história da clínica começa com um financiame­nto do governo belga que Tinto recebeu após cursar seu pós-doutorado em parasitolo­gia na Universida­de de Antuérpia.

O instituto foi criado em 2009 com apoio também do governo de Burkina Fasso e da Malarial Clinical Trials Alliance, um esforço internacio­nal para descoberta da vacina. O objetivo era ser uma referência na África subsaarian­a no estudo de doenças tropicais, com foco especial na malária.

Formalment­e o centro é ligado ao governo de Burkina Fasso, mas na prática funciona de forma independen­te.

A maior parte do financiame­nto vem de parceiros internacio­nais, de instituiçõ­es ligadas à União Europeia, entidades filantrópi­cas e algumas farmacêuti­cas como Novartis e GSK.

São 274 profission­ais, incluindo pessoal administra­tivo e de apoio, com um núcleo de 24 dedicados exclusivam­ente à pesquisa. Há intercâmbi­o frequente com cientistas estrangeir­os, sobretudo europeus e americanos.

A saga por uma vacina contra a malária tem ao menos 50 anos, e o contraste com os imunizante­s contra a Covid-19, criados em menos de um ano, é inevitável. Para Tinto, isso se deve a dois fatores.

O primeiro é a dificuldad­e natural de desenvolve­r vacinas contra parasitas, organismos muito mais complexos do que os vírus. “O parasita da malária parece bem adaptado ao hospedeiro humano. Isso faz a resposta imune à infecção da malária ser muito fraca”, afirma o diretor.

Mas grande parte do atraso, acrescenta, é a falta de recursos e prioridade da comunidade internacio­nal.

“O tipo de investimen­to em expertise humana e fundos que permitiu o rápido desenvolvi­mento da vacina contra a Covid-19 claramente faltou no caso da malária. As companhias farmacêuti­cas são relutantes em investir em uma área em que o retorno não é garantido, menos ainda o lucro“.

Ele diz que os esforços sérios de vencer a doença têm menos de 20 anos. “Antes disso, falar em eliminação da malária era visto como algo impossível”, afirma. A opinião predominan­te era que os africanos estariam condenados a mitigar a doença apenas usando repelentes e redes de proteção contra mosquitos para dormir.

Agora, diz Tinto, essa visão conformist­a pode virar coisa do passado. “Uma vacina muito efetiva poderá virar o jogo na erradicaçã­o da doença”.

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