Folha de S.Paulo

A peça mais rara

Aqui estou mais um dia, sob o olhar extraordin­ário de um vigia

- Bia Braune Jornalista e roteirista, é autora do livro ‘Almanaque da TV’. Escreve para a TV Globo

Para quem já esteve na mira de fuzis, tentando conter assaltos a banco dignos de filme de ação, assegurar a integridad­e de uma escarradei­ra que pertenceu a dom João 6º é moleza. “Falando, parece fácil. Mas outro dia, um garotinho fugiu da visita escolar e tentou colar chiclete no nariz dum anjo barroco.”

Sérgio atua como vigilante patrimonia­l há mais de 30 anos. Aliás, “Sérgio” é nome inventado, pois ele prefere ficar incógnito. “Quem tem que aparecer são os objetos de valor. Meu trabalho é ser invisível.”

É? Pois eu o avistei bem antes da pandemia. O museu estava aberto, mas já vivia vazio. Esse clássico das instituiçõ­es que lutam para se manter de pé apesar do descaso federal.

De longe, ele parecia temer que eu tirasse uma marreta da bolsa. Na real, eu lutava contra um mapa, perdida, tentando achar a setinha do “você está aqui”. Até que o questionei sobre a pena com que a Lei Áurea foi assinada. “Ih, não: fica lá no Museu de Petrópolis.”

Na hora, me senti tão desinforma­da que foi como se o garoto do chiclete e outros alunos da visita escolar me tacassem uma chuva de bolinhas de papel. O vigia notou e sorriu. “A senhorita já passou pelas espadas imperiais? Dizem que uma é assombrada: só cortava cabeças.” Pronto: amei Sérgio.

Para além das agências de banco, ele tem vários museus no currículo. “Faltou o Nacional. Quando penso no incêndio, me dá tristeza.” Seu prazer é ouvir as visitas guiadas. “Isso me aprimora.” Indaguei se vigilantes escolhem onde trabalhar. “Não, daqui posso ser transferid­o para qualquer lugar. Um estacionam­ento. Ninguém sabe da vida.”

Puxei o celular para ver as horas: o museu ia fechar. “Muita gente olha mais para isso aí do que para os quadros, sabe?” Pedi, então, que ele me indicasse seu favorito. “Ah, o do navio em chamas. Tem a lua refletida no mar. É lindo. Se quiser ver, dá tempo.” Claro que eu quis. Andei rápido.

Fui conferir a obra com meus próprios olhos, mas acho que a enxerguei também com os olhos do Sérgio: era um deslumbre. Ocupava a parede quase toda. Me emocionei.

Soube que meu amigo continua no museu, agora acompanhan­do reformas para quando tudo reabrir. Fiquei feliz: um patrimônio humano desses também precisa ser preservado. Zelando pela memória, não por carros num estacionam­ento. Então siga vigilante, Sérgio. Por favor, siga.

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Marcelo Martinez

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