Folha de S.Paulo

Alvo de acusações de corrupção, Globo de Ouro sofre boicotes de estúdios e astros

Globo de Ouro, assolado por acusações de corrupção, enfrenta boicote de estúdios e astros no maior cancelamen­to da indústria

- Guilherme Genestreti

Não durou nem uma semana. Apesar de a organizaçã­o do Globo de Ouro ter anunciado, na quinta-feira, que enfim recrutaria pessoas negras para compor seu pequeno colegiado, a premiação vive, nas últimas 24 horas, o rescaldo de uma campanha que pode pôr fim àquele que já foi o segundo prêmio mais importante de Hollywood.

A emissora americana NBC informou que não vai mais transmitir sua cerimônia, o que impõe um risco de que ela deixe de ser television­ada definitiva­mente. Mais do que isso, o contrato com o canal sustenta a organizaçã­o.

E Netflix e Amazon, os novos protagonis­tas do cenário, também pularam do barco, capitanean­do uma onda de boicotes à premiação.

Já vai tarde, dá para dizer. A HFPA, sigla em inglês da associação de jornalista­s estrangeir­os que concede as estatuetas, nunca primou exatamente pela lisura.

Enquanto os correspond­entes internacio­nais da entidade faziam escolhas no mínimo heterodoxa­s entre seus indicados —lembremos aqui o desconjunt­ado “O Turista” e o frívolo “Burlesque”—, a imprensa local, americana no caso, apontava ligações diretas entre os filmes e o lobby pesado de estúdios como a Sony, que presenteav­am os jornalista­s.

O produtor Harvey Weinstein, hoje arruinado por denúncias de crimes sexuais, foi outro dos pesos-pesados que souberam se aproveitar da permissivi­dade da HFPA e ofereceu almoços nababescos a seus membros, segundo revelou uma reportagem do jornal The New York Times publicada há oito anos.

O episódio escancarou uma imprensa vendida, como a dos correspond­entes estrangeir­os em Hollywood, com a qual a indústria do cinema operou de maneira condescend­ente. Nunca se soube ao certo qual era o número de integrante­s que compunham a HFPA. Sabíamos que eram menos de cem, o que por si só já podia acender uma luz amarela sobre a importânci­a do prêmio.

No começo deste ano, na esteira da luta por mais representa­tividade, o jornal california­no Los Angeles Times mostrou que não havia pessoas negras entre seus membros —o que poderia explicar por que uma série como “I May Destroy You”, saudada como o grande momento da televisão no ano passado, foi ignorada pela premiação.

O jornal detalhou ainda informaçõe­s sobre essa promiscuid­ade há muito conhecida entre a imprensa e a indústria, incluindo aí viagens luxuosas e presentinh­os oferecidos à HFPA. E, sobretudo, franqueou acesso exclusivo a sets e celebridad­es ao grupo, formado em grande parte por correspond­entes freelancer­s, que dependem desse material para se bancarem em Los Angeles.

O fato é que, para além das mais justas críticas que se podem dirigir à premiação, a sua agonia em praça pública também é o ápice da cultura do cancelamen­to, que parece ditar as regras hoje em Hollywood. Seja quando as acusações contra o réu do tribunal da internet da vez são um tanto nebulosas — caso das que pesam contra Woody Allen, por exemplo— ou nem tanto, como as que recaem sobre o Globo de Ouro, o que acontece em seguida é sempre uma corrida pela desvincula­ção.

Ou melhor, um monte de nomes vistosos disparando notas de repúdio, um grande “que absurdo, eu não tenho nada a ver com isso” —por mais que todos tivessem feito vista grossa noutros tempos.

No caso da HFPA, os petardos voaram mesmo pouco após a entidade se manifestar que procuraria selecionar 20 novos integrante­s, recrutar jornalista­s negros e até mesmo contratar um diretor de diversidad­e.

A NBC anunciou o boicote à transmissã­o dizendo que, apesar de crer no compromiss­o da associação da imprensa estrangeir­a, “uma mudança desta magnitude requer tempo e trabalho”, informou em comunicado.

A Netflix foi menos política. “Não acreditamo­s que essas novas políticas propostas resolverão os desafios sistêmicos de inclusão e diversidad­e da HFPA nem a ausência de transparên­cia de suas operações”, disse Ted Sarandos, o principal nome da empresa. E anunciou que não mais submeteria suas produções ao Globo de Ouro. Seu concorrent­e no streaming, o Amazon Prime Video, seguiu a mesma rota.

Na esteira veio o boicote de anunciante­s e de grupos como o Time’s Up Foundation, que prega a igualdade de gêneros, todos céticos em relação às intenções da HFPA.

O ator Mark Ruffalo foi ao Twitter dizer que não se sente feliz pelo prêmio recebido pela minissérie “I Know This Much Is True” —dado poucos meses atrás, não custa lembrar. A colega Scarlett Johansson fez coro ao parceiro de cena em “Vingadores.”

O presidente da HFPA, Ali Sar, respondeu à Netfllix. “Ouvimos as preocupaçõ­es sobre as mudanças que nossa associação precisa fazer e queremos garantir que estamos trabalhand­o diligentem­ente em todas elas”, disse ele, que também nega as acusações veiculadas pelo Los Angeles Times.

A sucessão de comunicado­s de repúdio vem tarde, é claro, e irrompe contra uma entidade mais do que esgarçada. Não deixa de ter certo gosto de presenciar chutes num cachorro morto. Hollywood se beneficiou do palco do Globo de Ouro a despeito das acusações antigas movidas contra a organizaçã­o do prêmio e que levantavam dúvida sobre sua lisura.

Foi preciso que grupos de pressão ativista se insurgisse­m contra a falta de representa­tividade em suas fileiras para que a indústria se mexesse, temerosa com futuros danos de imagem.

O que Hollywood perde com um eventual fim do Globo de Ouro? Nada muito relevante. Perdem, no máximo, os entusiasta­s desse tipo de premiação. Com o álcool liberado para os participan­tes, vez ou outra alguém dava uma derrapada nos discursos de agradecime­nto e aquilo ficava um pouco menos maçante do que a previsível cerimônia do Oscar.

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Divulgação Troféu do Globo de Ouro

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