Alvo de acusações de corrupção, Globo de Ouro sofre boicotes de estúdios e astros
Globo de Ouro, assolado por acusações de corrupção, enfrenta boicote de estúdios e astros no maior cancelamento da indústria
Não durou nem uma semana. Apesar de a organização do Globo de Ouro ter anunciado, na quinta-feira, que enfim recrutaria pessoas negras para compor seu pequeno colegiado, a premiação vive, nas últimas 24 horas, o rescaldo de uma campanha que pode pôr fim àquele que já foi o segundo prêmio mais importante de Hollywood.
A emissora americana NBC informou que não vai mais transmitir sua cerimônia, o que impõe um risco de que ela deixe de ser televisionada definitivamente. Mais do que isso, o contrato com o canal sustenta a organização.
E Netflix e Amazon, os novos protagonistas do cenário, também pularam do barco, capitaneando uma onda de boicotes à premiação.
Já vai tarde, dá para dizer. A HFPA, sigla em inglês da associação de jornalistas estrangeiros que concede as estatuetas, nunca primou exatamente pela lisura.
Enquanto os correspondentes internacionais da entidade faziam escolhas no mínimo heterodoxas entre seus indicados —lembremos aqui o desconjuntado “O Turista” e o frívolo “Burlesque”—, a imprensa local, americana no caso, apontava ligações diretas entre os filmes e o lobby pesado de estúdios como a Sony, que presenteavam os jornalistas.
O produtor Harvey Weinstein, hoje arruinado por denúncias de crimes sexuais, foi outro dos pesos-pesados que souberam se aproveitar da permissividade da HFPA e ofereceu almoços nababescos a seus membros, segundo revelou uma reportagem do jornal The New York Times publicada há oito anos.
O episódio escancarou uma imprensa vendida, como a dos correspondentes estrangeiros em Hollywood, com a qual a indústria do cinema operou de maneira condescendente. Nunca se soube ao certo qual era o número de integrantes que compunham a HFPA. Sabíamos que eram menos de cem, o que por si só já podia acender uma luz amarela sobre a importância do prêmio.
No começo deste ano, na esteira da luta por mais representatividade, o jornal californiano Los Angeles Times mostrou que não havia pessoas negras entre seus membros —o que poderia explicar por que uma série como “I May Destroy You”, saudada como o grande momento da televisão no ano passado, foi ignorada pela premiação.
O jornal detalhou ainda informações sobre essa promiscuidade há muito conhecida entre a imprensa e a indústria, incluindo aí viagens luxuosas e presentinhos oferecidos à HFPA. E, sobretudo, franqueou acesso exclusivo a sets e celebridades ao grupo, formado em grande parte por correspondentes freelancers, que dependem desse material para se bancarem em Los Angeles.
O fato é que, para além das mais justas críticas que se podem dirigir à premiação, a sua agonia em praça pública também é o ápice da cultura do cancelamento, que parece ditar as regras hoje em Hollywood. Seja quando as acusações contra o réu do tribunal da internet da vez são um tanto nebulosas — caso das que pesam contra Woody Allen, por exemplo— ou nem tanto, como as que recaem sobre o Globo de Ouro, o que acontece em seguida é sempre uma corrida pela desvinculação.
Ou melhor, um monte de nomes vistosos disparando notas de repúdio, um grande “que absurdo, eu não tenho nada a ver com isso” —por mais que todos tivessem feito vista grossa noutros tempos.
No caso da HFPA, os petardos voaram mesmo pouco após a entidade se manifestar que procuraria selecionar 20 novos integrantes, recrutar jornalistas negros e até mesmo contratar um diretor de diversidade.
A NBC anunciou o boicote à transmissão dizendo que, apesar de crer no compromisso da associação da imprensa estrangeira, “uma mudança desta magnitude requer tempo e trabalho”, informou em comunicado.
A Netflix foi menos política. “Não acreditamos que essas novas políticas propostas resolverão os desafios sistêmicos de inclusão e diversidade da HFPA nem a ausência de transparência de suas operações”, disse Ted Sarandos, o principal nome da empresa. E anunciou que não mais submeteria suas produções ao Globo de Ouro. Seu concorrente no streaming, o Amazon Prime Video, seguiu a mesma rota.
Na esteira veio o boicote de anunciantes e de grupos como o Time’s Up Foundation, que prega a igualdade de gêneros, todos céticos em relação às intenções da HFPA.
O ator Mark Ruffalo foi ao Twitter dizer que não se sente feliz pelo prêmio recebido pela minissérie “I Know This Much Is True” —dado poucos meses atrás, não custa lembrar. A colega Scarlett Johansson fez coro ao parceiro de cena em “Vingadores.”
O presidente da HFPA, Ali Sar, respondeu à Netfllix. “Ouvimos as preocupações sobre as mudanças que nossa associação precisa fazer e queremos garantir que estamos trabalhando diligentemente em todas elas”, disse ele, que também nega as acusações veiculadas pelo Los Angeles Times.
A sucessão de comunicados de repúdio vem tarde, é claro, e irrompe contra uma entidade mais do que esgarçada. Não deixa de ter certo gosto de presenciar chutes num cachorro morto. Hollywood se beneficiou do palco do Globo de Ouro a despeito das acusações antigas movidas contra a organização do prêmio e que levantavam dúvida sobre sua lisura.
Foi preciso que grupos de pressão ativista se insurgissem contra a falta de representatividade em suas fileiras para que a indústria se mexesse, temerosa com futuros danos de imagem.
O que Hollywood perde com um eventual fim do Globo de Ouro? Nada muito relevante. Perdem, no máximo, os entusiastas desse tipo de premiação. Com o álcool liberado para os participantes, vez ou outra alguém dava uma derrapada nos discursos de agradecimento e aquilo ficava um pouco menos maçante do que a previsível cerimônia do Oscar.