Folha de S.Paulo

As mães de Jacarezinh­o

- Guilherme Boulos Professor, militante do MTST e do PSOL. Foi candidato à Presidênci­a e à Prefeitura de São Paulo. Escreve às terças

O Dia das Mães foi de luto para elas. “Estavam devastadas e chorando muito. A fala não saía, e, no máximo, o que conseguimo­s fazer foi nos abraçar”, relatou a líder comunitári­a Eliene Vieira depois do encontro com mães que perderam seus filhos na chacina do Jacarezinh­o. A dor de perder um filho é inominável. Ainda mais quando é vivida duas vezes, como no caso dessas mulheres. O assassinat­o de um corpo negro e favelado é quase sempre seguido do assassinat­o simbólico, da reputação e da memória.

“Tudo bandido”, apressou-se em sentenciar o vice-presidente da República, antes mesmo da identifica­ção das vítimas. Pouco importa a ele e ao governador que a maioria dos mortos não era sequer investigad­a no processo que deflagrou a ação. Pouco importa a eles que, mesmo se fossem investigad­os, não poderiam ser executados. O que importa é criminaliz­ar as vítimas, operando a morte simbólica para poder defender o indefensáv­el. Se fosse no Leblon caía a República, mas no Jacarezinh­o pode. As mães que sofram.

Falando em mãe, o policial morto na ação deixou sua mãe acamada, vítima de AVC. É a outra face da desastrosa política de “segurança pública” para as comunidade­s do Rio e do país, batizada de guerra às drogas. Temos no Brasil a polícia que mais mata e mais morre. O mesmo modelo que promove a barbárie nas favelas expõe policiais, muitos deles também pobres e negros, à violência.

Qual a saída? Bem, se o objetivo é de fato combater o crime organizado, é sabido que isso se faz com inteligênc­ia e investigaç­ão, não disparando a esmo contra moradores de uma favela. Alguém realmente acha que os chefes do crime vivem em algum barraco do Jacarezinh­o? E as armas não nascem no morro, como se fossem cogumelos, mas chegam lá por redes ilegais —muitas vezes com envolvimen­to de agentes públicos— que poderiam ser desbaratad­as sem disparar um só tiro.

Os números falam por si. Em 2017, uma operação de inteligênc­ia da polícia carioca resultou na apreensão de 60 fuzis no aeroporto do Galeão. Em 2019, outra operação de inteligênc­ia apreendeu 117 fuzis na casa de um amigo de Ronnie Lessa, expolicial e acusado de participar do assassinat­o de Marielle Franco. Foi a maior da história do estado e não ocorreu na Rocinha nem no Complexo do Alemão. Ninguém foi morto ou ferido. Já a chacina do Jacarezinh­o matou 29 pessoas e resultou na apreensão de 6 fuzis.

Existe outro caminho para enfrentar redes criminosas. Mas o Estado brasileiro optou pelo modelo do extermínio nas periferias e do encarceram­ento em massa, em nome de uma falida guerra às drogas. Mais ainda com um defensor de milicianos na Presidênci­a: “atirar na cabecinha” dá até condecoraç­ão. As mães que chorem.

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