Folha de S.Paulo

Diplomacia da cloroquina

Mobilizaçã­o do Itamaraty em busca de droga ineficaz deve ser alvo da CPI

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Avolumam-se as provas dos desmandos do governo federal na gestão da pandemia. Os esforços para obter, produzir e distribuir cloroquina e sua variante hidroxiclo­roquina vão se configuran­do no caso mais evidente em que a administra­ção Jair Bolsonaro foi além da incompetên­cia e até da negligênci­a.

Documentos obtidos pela Folha acrescenta­m elementos a esse enredo aterrador, um dos alvos da CPI do Senado. Uma série de telegramas expedidos em 2020 pelo Ministério das Relações Exteriores, então sob Ernesto Araújo, mostra que a pasta mobilizou o aparato diplomátic­o para garantir o fornecimen­to das substância­s ao país.

A saga teve início em 26 de março, quando o Itamaraty determinou que diplomatas buscassem sensibiliz­ar o governo da Índia, que então restringia a exportação dessas drogas, “para a urgência da liberação (...) dos bens encomendad­os” por empresas nacionais.

O telegrama foi enviado na mesma data em que Bolsonaro declarou, numa reunião do G20, que haveria “testes bem-sucedidos, em hospitais brasileiro­s, com a utilização de hidroxiclo­roquina”.

Ocorre que não apenas inexistiam os tais bons resultados como nada justificav­a a urgência do pedido. Àquela altura, a hidroxiclo­roquina poderia ser classifica­da, no máximo, como promissora, status compartilh­ado por outras tantas drogas em fase de testes.

Nos meses seguintes, a ineficácia da substância tornou-se cada vez mais patente. Diversas associaçõe­s médicas passaram a desaconsel­har seu uso, e a OMS acabou suspendend­o os testes.

Mesmo assim, até junho, inúmeras mensagens de teor semelhante continuara­m a ser enviadas aos diplomatas no exterior.

O próprio Bolsonaro, que num destampató­rio recente chamou de canalhas os que se opõem à prescrição da droga, envolveu-se na questão. Um telegrama de 4 de abril informa que ele fez um “apelo humanitári­o” ao primeiro-ministro indiano pela liberação de carregamen­tos de hidroxiclo­roquina.

Trata-se, a esta altura, de charlatani­smo financiado com dinheiro público e apoio do aparato do Estado —e que põe em risco a saúde da população. A ofensiva contrasta com o pouco empenho na busca de mais vacinas. Até novembro, o ministério não havia enviado instruções nesse sentido.

O falastrão Araújo, dado a teorias conspirató­rias, terá a tarefa inglória de justificar tais atos em depoimento à CPI. Bolsonaro, de fato, não precisa de adversário­s.

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