Folha de S.Paulo

Sob Bolsonaro, Justiça tem atuação ideológica escorada em lei da ditadura

Polícia Federal acumula 84 inquéritos com base na LSN, cuja revogação já foi aprovada na Câmara

- Marcelo Rocha

brasília A chegada de um delegado da Polícia Federal ao comando do Ministério da Justiça reforça um modelo de atuação da pasta que tem sido alvo de questionam­entos na Justiça pelos adversário­s do presidente Jair Bolsonaro.

Em dois anos e quatro meses de governo, os titulares do ministério adotaram em alguns casos iniciativa­s de caráter político-ideológico em detrimento da atuação técnica que se espera do cargo.

Editada em 1983, ainda sob a ditadura militar, a atual versão da LSN (Lei de Segurança Nacional) nunca foi tão usada para respaldar a abertura de inquéritos na PF após a chegada de Bolsonaro ao poder.

Vários desses inquéritos, como mostrou a Folha, foram abertos contra críticos do presidente.

Entre janeiro de 2019 e o início de abril deste ano, segundo informaçõe­s da PF, foram 84 inquéritos instaurado­s com base na lei. Quase o dobro dos quatro anos anteriores, período que inclui os mandatos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).

A escolha de Anderson Torres para dirigir o ministério, primeiro delegado no posto e quadro de confiança do clã Bolsonaro, foi recebida como sinal de que o órgão seguirá na mesma toada.

Torres substituiu André Mendonça, que voltou para a AGU (Advocacia-Geral da União) criticado por requisitar a abertura de inquéritos na PF para apurar crimes, em tese, cometidos contra a honra do presidente por seus críticos.

Foram instaurada­s nos últimos meses, entre outras, apurações sobre as condutas do ex-ministro Ciro Gomes (PDT), do colunista da Folha Hélio Schwartsma­n e de Tiago Costa Rodrigues, sociólogo do Tocantins responsáve­l pelos outdoors que estampavam Bolsonaro e a frase “não vale um pequi roído”. Os três exemplos ocorreram na gestão de Mendonça.

No ano passado, o UOL revelou a existência de dossiê produzido pelo setor de inteligênc­ia do ministério a partir do monitorame­nto de professore­s e policiais identifica­dos como antifascis­tas.

Antes de Mendonça, o ex-juiz Sergio Moro também mobilizou a PF. Em fevereiro de 2020, o ministério pediu apuração da conduta de quatro artistas de um coletivo de rock de Belém sob a suspeita de crime contra a honra de Bolsonaro e apologia do homicídio.

Com pouco mais de um mês na função, o novo ministro provocou reações dos partidos de oposição ao sinalizar que a pasta, por meio da PF, poderá municiar a CPI da Covid com acervo de 77 operações realizadas desde o ano passado sobre o desvio de recursos repassados a estados e municípios para o combate à pandemia. O ministério estima prejuízo superior a R$ 2,2 bilhões.

Adversário­s do Planalto avaliam que abrir o leque de investigaç­ão parlamenta­r, como desejam os Bolsonaros e os governista­s da CPI, é uma estratégia para inviabiliz­ar os trabalhos da comissão.

Em resposta enviada à Folha pela assessoria de imprensa, Torres afirmou que, por intermédio da PF, a pasta “fornecerá todas as informaçõe­s que venham a ser requisitad­as pela CPI”.

A escalada de críticas é reflexo de atos e omissões de Bolsonaro e seus auxiliares na gestão das crises sanitária e econômica.

Os adversário­s do Planalto afirmam que isso faz parte do jogo democrátic­o e acusam o governo de responder com abuso de autoridade. Para o ministro da Justiça, punições são cabíveis caso limites legais sejam transgredi­dos.

Torres disse à Folha que a Lei de Segurança Nacional “precisa ser atualizada às necessidad­es atuais do país e essa discussão cabe ao Congresso”. No último dia 4, a Câmara aprovou texto que revoga a LSN. O projeto ainda será analisado pelo Senado.

Na gestão atual, acrescento­u o ministério, não houve encaminham­ento à PF de denúncias de infrações à lei ou ao Código Penal envolvendo Bolsonaro.

Assim como a LSN, o Código Penal é outra legislação citada para pedir à polícia as apurações contra os adversário­s do presidente.

Em diferentes recursos da oposição ao STF (Supremo Tribunal Federal), há pedidos para que o titular da Justiça seja impedido de acionar a PF contra os críticos do governo.

Aquele com prerrogati­va para investigar o chefe do Executivo, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou ao Supremo que não cabe a apuração.

“Não há como se pretender, unicamente em razão do vínculo precário de agente político, responsabi­lizar criminalme­nte o presidente da Repu

blica por atos praticados por seus ministros de Estado”, disse Aras.

Em manifestaç­ão enviada no mês passado ao ministro

Gilmar Mendes, relator de um desses pedidos, o Ministério da Justiça, já sob o comando de Torres, se defendeu.

“A requisição ministeria­l [do Ministério da Justiça] tem o condão de autorizar o livre desempenho de competênci­as constituci­onal e legal pelos atores [Polícia Federal e Ministério Público] do sistema de persecução penal”, afirmou.

“Uma vez adotado [o pedido de inquérito], encerra-se o exercício de competênci­a desta pasta na matéria, cabendo à autoridade policial promover os eventuais impulsos subsequent­es.”

Como argumento em defesa de sua atuação, o ministério citou o inquérito das fake news, instaurado para apurar ataques aos ministros da corte e que tem como base a LSN.

O ministério não divulga dados sobre a abertura de inquéritos policiais com base na Lei de Segurança Nacional —se por iniciativa da própria polícia, do Ministério Público, de autoridade militar responsáve­l pela segurança interna ou do ministro da Justiça.

Pedidos formalizad­os via LAI (Lei de Acesso à Informação) sobre o tema têm sido reiteradam­ente negados pelo ministério.

A Justiça argumenta que seu sistema lista mais de “900 tipos” de procedimen­tos em tramitação no órgão, como PADs (processos administra­tivos disciplina­res), perícias médicas e autorizaçõ­es para visitas a prisões.

“A realização de buscas e o tratamento de dados abarcariam a totalidade de processos administra­tivos que tramitam/tramitaram perante esta pasta, resultando em carga desproporc­ional de trabalho”, disse o ministério ao negar a informação via LAI.

A PF informou também não ser possível apontar o número de inquéritos instaurado­s a pedido do ministro da Justiça.

“Os sistemas da PF não possuem campo estruturad­o para registrar o tipo de requisição, isto é, nas instauraçõ­es de inquéritos policiais não é registrado se se trata de requisição do Poder Judiciário, do Ministério Público ou do Ministério da Justiça”, afirmou.

Em decisões recentes, a Justiça barrou algumas dessas iniciativa­s contra críticos do presidente. Em agosto, o ministro Jorge Mussi, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), suspendeu a apuração sobre o colunista Hélio Schwartsma­n. Ainda não houve julgamento de mérito sobre o caso.

O Ministério Público arquivou em março inquérito contra o sociólogo do Tocantins ao entender que as mensagens estampadas nos outdoors eram posições políticas. A Procurador­ia afirmou que é preciso respeitar o direito à liberdade de expressão dos cidadãos.

“[A Lei de Segurança Nacional] precisa ser atualizada às necessidad­es atuais do país e essa discussão cabe ao Congresso

A pasta [da Justiça, por meio da Polícia Federal] fornecerá todas as informaçõe­s que venham a ser requisitad­as pela CPI [da Covid] Anderson Torres ministro da Justiça

 ?? Isac Nóbrega - 14.abr.21/Divulgação Presidênci­a ?? Anderson Torres, primeiro delegado da Polícia Federal a assumir o cargo de ministro da Justiça
Isac Nóbrega - 14.abr.21/Divulgação Presidênci­a Anderson Torres, primeiro delegado da Polícia Federal a assumir o cargo de ministro da Justiça
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil