Folha de S.Paulo

Profission­alismo no uso da força da polícia é posto em dúvida por discurso

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rio de janeiro O número recorde de mortes no Jacarezinh­o deixa evidente o fracasso da operação da Polícia Civil. Não há plano de segurança pública eficiente que conviva nessa frequência com homicídios cometidos por policiais.

Tendo como premissa o fracasso da operação em razão das 28 mortes, não é o número que põe em suspeita a legalidade da atuação dos policiais, mas sim o discurso que se fez —e costumeira­mente se faz— após as ocorrência­s.

No lugar de prestar contas detalhadas de suas ações, os delegados que chefiaram a desastrada ação optaram por criticar o que chamaram de ativismos e por dar explicaçõe­s genéricas sobre os objetivos e resultados de suas atuações.

O falatório com inflamação política de quinta-feira (7) pode tanto demonstrar sensação de desnecessi­dade dessa prestação de contas como tentativa de esconder abusos. Ambas as situações são graves.

É de conhecimen­to geral o poderio bélico que as facções criminosas no RJ acumularam. Não é, portanto, fora de cogitação a existência de 27 pessoas armadas dispostas a resistir à entrada dos policiais numa ação mal planejada.

Inadmissív­el é que, para explicar as mortes, a polícia tenha como posicionam­ento a frase do delegado Felipe Cury, diretor do Departamen­to Geral de Polícia Especializ­ada.

“Não tem suspeito. É criminoso, bandido, traficante e homicida, porque tentaram matar os policiais”, disse ele.

A fala do delegado não explica absolutame­nte nada. É apenas uma exigência básica para que nenhum dos policiais envolvidos nas ocorrência­s tivesse sido preso em flagrante.

Uma polícia que quer ser encarada como profission­al explicaria cada ocorrência, cada uma das circunstân­cias que levaram seus policiais a matar um bandido que, pela legislação, deveria ser preso.

O lamentável assassinat­o de um companheir­o de farda, como ocorrido, não a isenta dessa necessidad­e profission­al.

O único que se dignou a dar uma versão sobre alguma das ocorrência­s foi o delegado Fabrício Oliveira, da Core (Coordenado­ria de Recursos Especiais). Ele afirmou que dois criminosos foram mortos dentro de uma casa após invadir, coagir seus moradores e disparar contra os policiais.

A versão não é ponto final da apuração. Mas é ao menos um posicionam­ento minimament­e necessário para um agente público que mata a partir de seu treinament­o bancado com recursos públicos.

No lugar de explicar as outras 25 mortes, o subsecretá­rio Rodrigo Oliveira preferiu criticar “ativismos judiciais” que, segundo ele, fortalecer­am os criminosos e resultaram na matança. Como se o que aconteceu no Jacarezinh­o tivesse inaugurado um fenômeno, não sido o ápice de uma política executada há décadas sem qualquer eficiência.

A atuação do STF para impor limites e exigências às operações no Rio de Janeiro, alvo do delegado, vem após uma sequência de abusos, falta de prestação de contas e ausência completa de controle externo sobre o uso do monopólio da força da polícia.

Cury, o delegado do “é tudo bandido”, foi o mesmo que descreveu como objetivo da operação cumprir mandados vinculados a uma investigaç­ão sobre homicídios, aliciament­o de menores, sequestro de trens e roubos.

São suspeitas que recaem quase como por gravidade às facções criminosas que atuam no RJ. Mas o direito penal exige investigaç­ão, acusação formal e autorizaçã­o de um juiz para mandar prender.

A denúncia do Ministério Público não fala de nenhum dos crimes descritos por Cury.

Acusava 21 pessoas por associação ao tráfico em razão de fotos com armas postadas em redes sociais. A Justiça considerou suficiente, tornouas réus e mandou prendê-las.

Se, no cumpriment­o desses mandados, elas e outras foram mortas, é necessário mais do que discurso para que não se configure outro crime, com outros autores. Assim deveria ser na Justiça criminal, de cujos problemas a polícia é apenas o mais evidente.

A informalid­ade do “é tudo bandido” há anos significou desprezo pela prestação de contas e, em alguns casos, escondeu crimes. Não só por parte da polícia mas passando também pela Promotoria e o Judiciário.

Espera-se que, com a atuação do Supremo, o massacre do Jacarezinh­o exponha ao menos a necessidad­e de explicação pormenoriz­ada de cada uma das 27 mortes.

A eventual ausência de crime não isenta os responsáve­is pelo planejamen­to desastrado dessa operação. Evita apenas que a atuação policial, equivocada ou não, se torne cobertura para ações criminosas.

 ?? Marcia Foletto - 9.ami.21/Ag. O Globo ?? Enterro de Bruno Brasil, uma das vítimas da operação na zona norte do Rio, no cemitério de Inhaúma
Marcia Foletto - 9.ami.21/Ag. O Globo Enterro de Bruno Brasil, uma das vítimas da operação na zona norte do Rio, no cemitério de Inhaúma

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