Folha de S.Paulo

Jogo uma cadeira do sexto andar

O problema de pedir impeachmen­t é o verbo pedir

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Psicanalis­ta é o cara que aprendeu com Freud, desde “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, que os humanos buscam insistente­mente um tirano para chamar de seu. Somado a isso, descobriu em “O mal-estar na civilizaçã­o” o quinhão de resignação que a civilidade cobra para fazer frente à barbárie ordinária.

Saber disso —e da pulsão de morte que o move— o deixaria mais conformado? Ficaria o psicanalis­ta sentado em sua Bergères, circundado por espessa fumaça de charuto, esperando a inconsciên­cia chegar? Tendo atingido o Nirvana dos insights, reciclaria seu sofrimento em frases de autosupera­ção?

Se assim o fosse, Freud não teria se debruçado incansavel­mente sobre as mazelas sociais de sua época.

Contrarian­do possíveis expectativ­as, o que de fato ocorre é que “uma parte de mim almoça e janta, outra parte se espanta”, como disse Ferreira Gullar. E o espanto é tamanho, que a fantasia de correr para a janela —o mais perto da rua que se pode estar hoje— e gritar impropério­s, urrar de ódio e arremessar coisas não me larga ao longo do dia. Acordo cedíssimo, caminho pelo bairro antes do amanhecer, atendo meus pacientes, escrevo, cuido de meus relacionam­entos afetivos, enquanto contabiliz­o mortes por Covid e por chacina. A paz de espírito convive com o descalabro, o ultraje e o horror, revelando uma situação enlouquece­dora.

Assisto estupefata, mas sem surpresa, a um governo que responde à premência da luta pela vida com a maior chacina já vista no Rio de Janeiro. A cidade maravilhos­a é a atual capital da “República das Milícias” (Todavia, 2020), como bem retratou Bruno Paes Manso — obra imprescind­ível para entendermo­s os meandros da violência que assola o país.

Milícias que agem sob os auspícios de cidadãos que, por ação ou omissão, alimentam os monstros do qual se queixam.

Se a metáfora da tempestade perfeita servir para alguma coisa, lembremos que a pandemia —evento que marca o início simbólico do século 21—é contemporâ­nea do pior governo eleito em nossa trágica história nacional.

O psicanalis­ta Joel Birman, em “Trauma na pandemia do coronavíru­s” (2021), citando Foucault, nos lembra que o “dispositiv­o da lepra” foi substituíd­o pelo “dispositiv­o da peste”, na passagem da Idade Média para o Renascimen­to. No dispositiv­o da lepra —de caráter teológico e moral— o doente era banido da cidade por ser portador do Mal. No dispositiv­o da peste —de caráter científico e higienista— o cidadão é isolado para seu próprio bem, mas não perde a cidadania. No Brasil atual, os dois dispositiv­os se digladiam e vemos com estupefaçã­o a ciência tendo que lutar contra o obscuranti­smo medieval encampado pelo governo, que atribui a contaminaç­ão pelo vírus à pouca fé dos homens e sua cura a remédio ineficazes.

Constato indignada que, se não houve impeachmen­t até o momento, trata-se menos da falta de provas das ações escabrosas do capitão e sua corja, do que da falta de vontade política para levá-lo a cabo. A oposição, cujo cálculo político despreza as mortes e o inenarráve­l sofrimento da população, aguarda sem constrangi­mento o momento que melhor lhe aprouver para agir, no caso, as eleições de 2022. As exceções são raras e heroicas.

Vou até a janela e jogo uma cadeira do sexto andar, enquanto grito palavrões contra Bolsonaro, as milícias e todos os que os puseram e os mantém lá.

Não, apenas sento na cadeira e escrevo essas palavras, apostando que a consciênci­a cumpre sua função contra a barbárie. Ainda que não toda, como dizia Lacan, pois igualmente importante é o ato.

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