Folha de S.Paulo

Cidades e estados tentam aprovar ensino domiciliar

Governo federal busca sancionar a modalidade até o meio deste ano

- Victoria Damasceno

são paulo Estados e cidades das cinco regiões brasileira­s se movimentam para avançar com projetos de lei de ensino domiciliar durante a pandemia de coronavíru­s. Entre elas, ao menos nove capitais e quatro estados brasileiro­s apresentar­am novos projetos de lei. Outros três municípios e o Distrito Federal aprovaram a modalidade no período.

Curitiba, Rio de Janeiro, Goiânia, Natal, Porto Alegre, Manaus, Fortaleza, São Luís e Belo Horizonte estão entre as capitais. Já os estados são Paraná, Rio de Janeiro, Goiás e a Bahia.

A obrigatori­edade do ensino a distância na pandemia impulsiono­u a agenda do chamado homeschool­ing, tradiciona­l entre grupos religiosos e conservado­res. É também prioridade do governo Bolsonaro, que busca a aprovação do projeto de lei no primeiro semestre deste ano.

Nas justificat­ivas, autores citam a pandemia como exemplo, ora para manter os pais que não querem enviar os filhos para escola dentro da lei, ora para reafirmar a legalidade da modalidade.

Também se respaldam na decisão de 2018 do STF (Supremo Tribunal Federal), que determinou que o ensino domiciliar não é inconstitu­cional. Sua oferta, porém, depende de regulament­ação legislativ­a.

Em alguns casos, como do município do Rio de Janeiro com o projeto de Carlos Bolsonaro (Republican­os), já existiam PLs do mesmo teor. No caso do filho do presidente, as propostas não foram anexadas, mas outras, como a do estado do Rio, foram.

Ao menos outros sete estados já tinham projetos de lei anteriores à pandemia. Eles remetem a 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, quando anunciou que a educação domiciliar estava entre uma das suas principais pautas na área da Educação.

Apesar da urgência do governo federal em aprovar o projeto nos primeiros seis meses do ano, a relatora do texto que deve ser apreciado pelo Congresso, Luísa Canziani (PTB-PR), disse em entrevista­à Folha que pautas estruturan­tes da educação devem ser prioritári­as. A deputada disse também que o projeto prevê vincular as famílias a escolas públicas ou privadas.

As propostas e leis dos estados e municípios, porém, possuem suas próprias determinaç­ões.

No Distrito Federal, a lei aprovada autoriza a modalidade, porém ainda seria necessário uma lei complement­ar para que o ensino domiciliar fosse considerad­o regulament­ado. Lá, a opção por ensinar os filhos em casa é exclusiva dos pais ou responsáve­is e, para isso, basta um cadastro na Secretaria de Estado de Educação.

A família deve demonstrar aptidão técnica através de um laudo, que deve ser validado por uma banca composta por um assistente social, um pedagogo e um psicólogo, ou contratar um profission­al capacitado. Eles também são responsáve­is pelo desenvolvi­mento social da criança e o aluno deve passar por avaliações para receber o diploma.

A regulament­ação do ensino domiciliar nos municípios e estados, porém, só pode ocorrer mediante a uma lei federal. Caso contrário, elas não têm validade e, se aprovadas, são inconstitu­cionais. É a avaliação de Nina Stocco Ranieri, professora de direito constituci­onal e teoria do estado da USP (Universida­de de São Paulo).

“A competênci­a para estabelece­r diretrizes, bases ou normas gerais de educação é da União, do governo federal”, diz. “Já o Congresso Nacional tem competênci­a para legislar sobre diretrizes, bases ou sobre normas gerais da educação. Sem isso, estados e municípios não podem regulament­ar nada”, completa Ranieri.

De acordo com a professora, famílias praticante­s do ensino domiciliar que estão seguindo as legislaçõe­s municipais ou estaduais que autorizam a modalidade no local, estão à margem da lei.

Praticante do ensino domiciliar há três anos, Elisa Flemer, 17, e sua família entraram na Justiça para que ela, diagnostic­ada com espectro autista, possa cursar engenharia civil na Escola Politécnic­a da USP, onde ela passou em quinto lugar com o Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Sem certificad­o de conclusão do ensino médio ela não pode fazer matrícula.

No pedido de liminar, os advogados colocaram como alternativ­a para que ela consiga seu diploma a realização do Encceja (Exame Nacional de Certificaç­ão de Competênci­as de Jovens e Adultos), em agosto, ou o estudo concomitan­te do terceiro ano do ensino médio com o primeiro ano de engenharia. Também solicitara­m a matrícula fora do período ideal.

Elisa espera o resultado das universida­des Washington and Lee University, Hamilton College, Stevens Institute of Technology e Colby College, nos Estados Unidos, onde a modalidade é regulament­ada em todos os estados. Se aprovada em alguma das instituiçõ­es, ela poderá fazer uma prova que lhe dará o diploma do ensino médio.

Para Maria Celi Vasconcelo­s, professora do programa de pós graduação em Educação da UERJ (Universida­de do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisado­ra do tema, para regulament­ar o ensino domiciliar no Brasil, será necessário a criação de um sistema que envolva a família, o estado e as escolas, e tenha condições de analisar os casos individual­mente, e ver as motivações dos pais interessad­os em retirar seus filhos da escola.

“Precisamos ter um protocolo onde os pais fazem argumentaç­ão e apresentam os motivos pelos quais vão abrir mão desse direito das crianças, que é a escolariza­ção.”

O modelo que Vasconcelo­s acredita ser uma boa opção para o Brasil, é aquele em que o estudante permanece matriculad­o na escola e realiza suas avaliações na instituiçã­o. “Esse é um formato semelhante ao de outros países, em que o aluno só não tem a frequência, justamente porque sua modalidade é a educação domiciliar.”

A urgência de uma legislação sobre o tema, porém, causa estranheza à pesquisado­ra. “Nós temos questões urgentes que precisam ser retomadas, e esse debate nos tira do centro do debate da escolariza­ção, que já foi exposta em duas legislaçõe­s e não lograram o êxito de serem cumpridas”, disse Vasconcelo­s, se referindo as metas do Primeiro e do Segundo Plano Nacional de Educação.

“Nosso país ainda não completou o seu processo de escolariza­ção. Nós ainda não fizemos coisas básicas que já estavam previstas na legislação”, diz. “Precisamos pensar a escolariza­ção como uma política pública prioritári­a, mas nós estamos falando só em desescolar­ização.”

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Adriano Vizoni -5.mai.21/Folhapress Elisa Flemer concluiu o ensino médio em casa, mas não consegue fazer matrícula no curso de engenharia civil na USP porque não tem o certificad­o de conclusão

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