Folha de S.Paulo

Cassiano se vai agora, mas sua voz foi silenciada há muito tempo

Esquecimen­to do músico, morto aos 77 anos, nos faz refletir sobre como tratamos a música negra brasileira

- Jairo Malta

“Ouvindo Cassiano, Há/ Os gambé não guenta.” Talvez tenha sido ouvindo esse verso “Vida Loka (Parte 2)”, de Mano Brown, que o nome de Cassiano apareceu para você pela primeira vez. Ou então em “Sou Mais Você”, quando o mesmo Brown despeja todo o seu discurso de autoajuda numa quebradinh­a emocionado e ao fundo se ouve a canção “Lágrimas”, de Cassiano.

Morto na última sexta, Genival Cassiano dos Santos era mais do que um cantor lembrado pelos rappers dos anos 1990. Nascido em Campina Grande, na Paraíba, mas um carioca de raiz por ter se mudado para o Rio de Janeiro nos anos 1960, formou o grupo Bossa Trio, muito inspirado no fundador do gênero, João Gilberto.

Da bossa nova para o funk, pouco tempo se passou. Inspirados por movimentos como os Panteras Negras e o black power, entre os anos 1960 e 1970, tivemos uma ascensão dos movimentos da música brasileira preta. Soul, funk e samba começaram a influencia­r bem mais músicos negros como Cassiano e seus amigos Tim Maia e Hyldon do que apenas os acordes dos violões da bossa nova da elite carioca.

A banda Black Rio e os bailes black são a base da música preta brasileira, seja no rap ou no funk. São movimentos em que Cassiano teve grande participaç­ão, tanto por suas criações quanto por seu estilo —talvez por isso ele seja tão reverencia­do pelos músicos daquela época.

Otis Redding, James Brown e Stevie Wonder eram as maiores referência­s dos músicos negros nos anos 1970, e foi na voz de Tim Maia, seu amigo e “síndico do Brasil”, para usar o apelido que Jorge Ben tinha dado a ele, que Cassiano foi apresentad­o ao mundo, com a música de sua autoria “Primavera (Vai Chuva)”. Lançada nos anos 1970 e impregnada com aquele sentimento de amor perdido, a música é cantada até hoje.

Cassiano era o legítimo quebrada romântico, digamos. Se você nunca se pegou, numa tarde fria, solitária, pensando na morena e cantando “sei que você gosta de brincar/ de amores/ mas ó/ comigo não/ comigo não”, você não sabe o que é sofrer por um amor não correspond­ido. Esses versos da música “Coleção”, de Cassiano, fizeram sucesso em seu lançamento, em 1976, em 1995, na voz de Ivete Sangalo ainda como integrante da Banda Eva, e em 1999, numa versão pagode do grupo Pixote.

Negro ser romântico era novidade naqueles anos 1970. Roberto Carlos, Ronnie Von e Jerry Adriani eram românticos mais atraentes para a cena musical da época do que Cassiano, Tim Maia e Hyldon. Quando os negros falavam de amor, eles iam além do romance. Vai ver por isso que uma das edições do jornal do Movimento Negro Unificado, o MNU, criado em 1970, trazia a frase “beije sua preta em praça pública”. O negro romântico existia, e Cassiano era um deles.

Gilberto Gil, Alcione, Marisa Monte e Djavan foram apenas alguns que gravaram e fizeram sucesso com músicas de autoria de Cassiano.

O ostracismo, suas brigas com as gravadoras e a triste derrocada precoce de sua carreira o fizeram deixar de ser referência para o público para virar referência para os músicos, e só. Em entrevista recente a este jornal, Hyldon disse que Cassiano “é uma história de querer sumir, não querer saber de nada”. “E, ao mesmo tempo, está produzindo, o que é um contraste. Mas ninguém consegue saber onde está o Cassiano. Acho que nem ele mesmo sabe.”

Na periferia, sua voz sempre estará em nosso inconscien­te, seja na abertura de uma apresentaç­ão dos Racionais MCs com a música “Onda” ou numa roda de samba do Pagode da 27. Sofrer por amor e manter a cara de mau é uma das coisas que aprendemos com Cassiano.

Um dos pais da soul music brasileira, presença constante no rap, Cassiano se foi aos 77, mas sua voz já estava silenciada havia anos. Pouco o procuramos, pouco o queríamos ouvir, não nos importamos com quem deveria ter tido muito mais reconhecim­ento na música popular brasileira. Seu esquecimen­to nos faz refletir sobre como tratamos a música negra brasileira. Quem será o próximo?

 ?? André Arruda/Agência O Globo ?? O músico Cassiano, que morreu, aos 77, na semana passada
André Arruda/Agência O Globo O músico Cassiano, que morreu, aos 77, na semana passada

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