Folha de S.Paulo

Torneira aberta das emendas corrói discurso de Bolsonaro

Crítico da ‘velha política’, presidente aumentou o ‘toma lá dá cá’ no Congresso Nacional após se unir ao centrão

- Ranier Bragon, Ricardo Della Coletta, Daniel Carvalho e Thiago Resende

brasília Bandeira eleitoral de Jair Bolsonaro (sem partido), o figurino de um presidente antissiste­ma e contrário à chamada “velha política” vem se chocando frontalmen­te com a prática adotada por ele na relação com o Congresso Nacional.

A partir principalm­ente do primeiro semestre de 2020, quando firmou acordo com o centrão para escapar da ameaça de um processo de impeachmen­t, Bolsonaro distribuiu cargos federais e um volume recorde de emendas parlamenta­res aos partidos do grupo que outrora chamava de “a alta nata de tudo o que não presta no Brasil”.

Conforme a Folha noticiou em março de 2020, a fragilidad­e política da segunda gestão de Dilma Rousseff (2015-2016) e do governo Michel Temer (2016-2018) e o fracasso de Bolsonaro em montar uma base de apoio concreta em seu primeiro ano de governo levaram o Congresso a atingir um papel de protagonis­mo poucas vezes visto na história do país, disputando com o Executivo a definição da aplicação do dinheiro federal para investimen­tos e custeio.

A liberação de verbas de emendas bateu recorde na gestão Bolsonaro, privilegio­u correligio­nários, que direcionar­am verbas para obras como pavimentaç­ão de vias, construção de adutoras e barragens em seus estados, e foi fundamenta­l, inclusive, para arregiment­ar o apóio de parlamenta­res em favor da eleição do seu aliado Arthur Lira (PP-AL) para o comando da Câmara dos Deputados.

No último fim de semana, o jornal O Estado de S. Paulo publicou reportagem relatando detalhes desse modelo de relação entre o governo e o Congresso, o que inclui ofícios enviados por deputados aliados de Bolsonaro ao Ministério do Desenvolvi­mento Regional, chefiado por Rogério Marinho, pedindo o direcionam­ento de emendas para obras e a aquisição de tratores nos municípios.

No site do ministério é possível acessar livremente informaçõe­s e documentos relativos a essas emendas, com o nome do parlamenta­r, inclusive da oposição (o senador Humberto Costa, do PTPE, por exemplo), que a apadrinhou, etapas da execução e os valores desembolsa­dos.

As emendas parlamenta­res, antigo foco de fisiologis­mo e corrupção na relação Executivo-Legislativ­o, ganharam mais relevância a partir de 2015, sob a batuta do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ).

Até então, funcionava o seguinte modelo: cada um dos 513 deputados federais e 81 senadores poderia alocar parte do Orçamento Federal —peça elaborada pelo governo, mas votada e emendada pelo Congresso, dai o nome “emenda parlamenta­r”— para obras e investimen­tos em seus redutos eleitorais.

Ocorre que o governo não era obrigado a cumprir essas emendas. Ou seja, executavaa­s de acordo com o seu interesse político —em geral privilegia­ndo quem lhe era fiel e punindo opositores. Congressis­tas, por sua vez, condiciona­vam o apoio à execução de suas emendas. Daí a expressão “toma lá dá cá”.

Em 2015, o Congresso alterou a Constituiç­ão e estabelece­u a execução obrigatóri­a das emendas apresentad­as individual­mente por cada um dos parlamenta­res, um total de cerca de R$ 10 bilhões, observadas algumas regras.

O grande salto ocorreu em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, quando se aprovou o Orçamento para 2020. O Executivo tentou sem sucesso emplacar um modelo de relação com parlamenta­res baseado na interlocuç­ão com frentes temáticas, como a ruralista, e não com partidos.

Foi quando o Congresso tornou obrigatóri­a a execução das emendas de bancadas estaduais —cerca de R$ 6 bilhões—, além das individuai­s.

Mais importante do que isso, emplacou um valor expressivo para emendas feitas pelo relator-geral do Orçamento, que é o deputado ou o senador que, a cada ano, conduz a análise do Orçamento pelo Congresso.

Câmara e Senado aprovaram um valor de cerca de R$ 30 bilhões para o relator, que repassaria essa verba para ser distribuíd­a por deputados e senadores alinhados.

Após reação da equipe econômica, que temia um estrangula­mento do poder de manejo orçamentár­io do governo, Bolsonaro vetou a medida, mas o Congresso só não derrubou o veto mediante acordo com o Palácio do Planalto que manteve R$ 20 bilhões nas mãos do relator-geral, sob a rubrica orçamentár­ia RP9.

Foi nesse período em que o presidente deixou de atacar o centrão. Antes das emendas de relator, as negociaçõe­s, como ocorreram na votação da reforma da Previdênci­a, envolviam outra forma de liberação, via recursos extraorçam­entários, que não entram no cálculo das emendas de destinação impositiva.

Na discussão do Orçamento de 2021 os parlamenta­res voltaram a tentar reservar cerca de R$ 30 bilhões para as emendas do relator-geral —valor que, na verdade, é rateado entre vários congressis­tas a depender dos acordos políticos firmados—, mas o montante ficou em torno de R$ 20 bilhões após vetos de Bolsonaro negociados com a equipe econômica e com líderes do Congresso.

Com isso, as emendas parlamenta­res autorizada­s no governo Bolsonaro tiveram valores mais do que duplicados em sua gestão. Em 2018, as individuai­s e coletivas representa­ram cerca de R$ 13 bilhões. Em 2019 (cujo Orçamento foi aprovado em 2018), cerca de R$ 15 bilhões.

Em 2020 e 2021, e já com a novidade das emendas do relator-geral, esses valores saltaram para R$ 38 bilhões e R$ 35 bilhões, respectiva­mente.

A verba do relator é uma moeda de troca muito mais passível de uso para obtenção do apoio parlamenta­r —já que as emendas individuai­s são de execução obrigatóri­a— e sujeitas a ainda menos transparên­cia.

O Planalto nega que haja irregulari­dades na forma como o dinheiro foi distribuíd­o. Bolsonaro atacou nesta terça-feira (11) as reportagen­s.

“Eu faço um churrasco aqui [no Alvorada], apanho. Inventaram que eu tenho um Orçamento secreto agora. Eu tenho um reservatór­io de leite condensado ali, 3 milhões de latas escondidas”, ironizou. “É sinal que eles não têm o que fazer. Como é que o Orçamento foi aprovado, discutido meses, agora apareceu R$ 3 bilhões?”

No programa Roda Viva, na noite desta segunda-feira (10), o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), disse que a indicação de emendas por parlamenta­res não é novidade e que não há nada de secreto na operação. Para Bezerra, essa questão vai ser esclarecid­a e ele acha “muito difícil” que se torne “tema de preocupaçã­o para o governo federal”.

A oposição na Câmara pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) a suspensão dos pagamentos de emendas parlamenta­res da modalidade RP9. O subprocura­dor-geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público junto ao TCU, também pediu à corte uma investigaç­ão sobre o tema.

A oposição protocolou ainda representa­ção no Ministério Público do Distrito Federal contra o ministro do Desenvolvi­mento Regional, Rogério Marinho.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), afirmou que irá avaliar o caso para adotar “um posicionam­ento que seja seguro” e “tecnicamen­te adequado”, dando “uma resposta que faça a defesa do Congresso Nacional em relação a episódios que por vezes não podem ser atribuídos ao Congresso Nacional.”

Em nota, o Ministério do Desenvolvi­mento Regional diz que o instrument­o de emendas do relator foi criado pelo Congresso, e não pelo Executivo. “É do Parlamento a prerrogati­va de indicar recursos da chamada emenda de relator-geral (RP9) do Orçamento.”

A pasta afirma ainda que a execução dos recursos é divulgada e atualizada diariament­e no portal do ministério e registra que eles também foram liberados para parlamenta­res da oposição.

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Ueslei Marcelino/Reuters O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Planalto nesta terça (11)
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