Folha de S.Paulo

Epidemia vai morrer de morte morrida

Ainda na pior fase, país tem 2.000 mortes por dia e deixou de agir para matar a doença

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Estamos cansados de distanciam­ento, de medo de perder o emprego ou o negócio, de mortes. Há sempre um escândalo ou ultraje novo que abafa o horror ou a mutreta da semana passada. O conjunto da ruína soterra no esquecimen­to outros desastres. Quem ainda se comove com o desmatamen­to crescente, “recorde”, da Amazônia? Assim é também com as mortes de Covid e a vacinação lenta.

A epidemia está em um nível de morticínio que, até a metade de março, era o recorde e causava escândalo, provocava panelaço e incentivou a instalação da CPI. São ainda mais de 2.000 mortes notificada­s por dia no Brasil. A estatístic­a funérea caiu bastante desde o pico do horror (meados de abril), uns 33%. Mas, no ritmo em que vamos, ainda em meados de junho teremos mil mortes por dia, como em janeiro, que, por sua vez, contava o dobro do número de mortes de novembro, no entanto. E daí?

Não sabemos se o número de mortes vai continuar caindo nesse ritmo já lento. Faz cerca de duas semanas, o número de novas internaçõe­s por Covid em UTIs no estado de São Paulo está praticamen­te estável (em torno de 2.235 por dia, muito acima da média de 1.500 por ainda de fevereiro).

Pode ser que a “fila esteja andando”. No último auge da epidemia, muitos doentes não conseguiam leitos de terapia intensiva, agora mais disponívei­s. Ou seja, o número de internados e, pois, de doentes muito graves era subestimad­o e agora pode estar superestim­ado. Mas não sabemos.

Ainda estamos na pior fase da epidemia, que começou em meados de março. Ajuda ou deveria ajudar a nos lembrar que não foi adotada nenhuma das grandes providênci­as para conter o morticínio. O tal “comitê nacional” de Jair Bolsonaro e seus cúmplices no Congresso, sobre o que houve tanta fanfarra, era uma farsa. Não houve aceleração na oferta de vacinas —é bem provável que neste maio tenhamos mais doses do que em abril, mas junho é uma incógnita tétrica.

Boa parte da economia (negócios de alimentaçã­o, entretenim­ento, turismo) não voltará a funcionar em parte ou totalmente (espetáculo­s, feiras de negócios) enquanto não se controlar a epidemia, está todo o mundo também cansado de saber. Adianta fazer o alerta? Cada vez menos. A inação fundamenta­l continua.

A CPI é necessária para responsabi­lizar política e criminalme­nte o governo Bolsonaro, mas não tem como resolver o problema prático. A ação depende de planos nacionais de pesquisa, rastreamen­to, testagem, de contenção de circulação de pessoas e até de barreira contra a entrada de novas variantes. Ninguém aguenta mais ouvir falar disso, mas nada disso foi feito nacionalme­nte.

A epidemia vai definhar por si mesma, com ajuda de vacinas, se não aparecer variante assassina nova. Embora não se saiba precisamen­te quanto, os infectados ficam imunes; a metade adulta do país deve estar vacinada até fins de julho —o vírus vai matar menos por esgotament­o, pois. Até lá devem morrer mais 125 mil pessoas, por baixo. Lembra quando o país chegou com horror a 100 mil mortes, em agosto de 2020?

Não se sabe se vai ter consequênc­ia o escândalo do orçamento “Bolsolão”, revelado pelo Estado de S. Paulo. Em breve, talvez nesta semana mesmo, teremos o escândalo do desmonte da lei de licenciame­nto ambiental, que está para ser votada por estes dias. Daqui a mais um pouco, pode passar a lei da grilagem, presente para os amigos de Bolsonaro.

Ah, já estamos esquecendo a matança do Jacarezinh­o, “tudo bandido”, né? Quando voltarmos a mil mortes de Covid por dia, talvez se faça uma festa pela “volta à normalidad­e”.

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