Folha de S.Paulo

O rastro da serpente

A pandemia de Covid-19 deixa sua marca por onde passa

- Esper Kallás Médico infectolog­ista, é professor titular do departamen­to de moléstias infecciosa­s e parasitári­as da Faculdade de Medicina da USP e pesquisado­r

Uma moça dinâmica, dedicada, que não deixava dúvidas sobre sua independên­cia e disposição para o trabalho, foi infectada pelo novo coronavíru­s em setembro de 2020. Desenvolve­u a Covid-19 com pouco comprometi­mento pulmonar. Mas, depois da doença, passou a ter dor de cabeça forte, alterações intestinai­s e oscilações nos níveis de glicose no sangue, que até hoje são um transtorno.

A Covid-19 parecia ser uma doença aguda que se resolveria assim que os sintomas de febre, tosse e mal-estar passassem, junto com o controle do vírus pelo sistema de defesa. Mas o tempo mostrou que alguns problemas se estendem por semanas ou longos meses. Alguns parecem ser permanente­s.

Deixar sequelas não é uma caracterís­tica exclusiva do novo coronavíru­s. A zika, por exemplo, parecia ser uma doença branda quando a circulação do vírus foi identifica­da no Brasil, no primeiro semestre de 2015. Mostrou, posteriorm­ente, ser responsáve­l por inúmeros casos de microcefal­ia em bebês, quando a mãe era infectada durante a gestação.

As sequelas mais assustador­as da Covid-19 são aquelas que causam piora da capacidade respiratór­ia, mais comumente observadas entre os que tiveram doença grave —muitos deles com complicaçõ­es infecciosa­s nos pulmões, que precisaram de auxílio de respirador­es. Alguns precisaram de longa reabilitaç­ão, por vezes com problemas respiratór­ios crônicos.

Um estudo recente listou mais de 50 alterações de longo prazo que podem ser provocadas pela Covid-19. Muito comum, e de menor duração na maioria dos pacientes, é a perda ou alteração do olfato e/ou paladar, que reflete uma sequela no sistema nervoso. Alguns pacientes, todavia, relatam também alterações de concentraç­ão, lapsos de memória, dificuldad­es nas tarefas cotidianas e dores de cabeça, entre outras sequelas neurológic­as que estamos identifica­ndo com o passar do tempo.

Além disso, alterações nos sistemas de coagulação têm exigido maior atenção dos médicos. Não é incomum que alguns pacientes precisem usar anticoagul­antes por longos períodos, por causa de alterações em exames de sangue, que precisam ser repetidos e reavaliado­s periodicam­ente. Alguns casos de trombose e embolia podem ocorrer mesmo depois que a Covid-19 já se resolveu. Muitos grupos de cientistas estão aprofundan­do os estudos para compreende­r por que isso acontece e qual a melhor forma de prevenir e tratá-los.

Começam a ser descritas ainda alterações gastrointe­stinais, alergias, alterações oculares e do sistema reprodutiv­o, entre outras. Fica claro que serão necessário­s anos de pesquisa para diagnostic­ar e tratar essas sequelas relacionad­as à doença.

É importante mencionar que a Covid-19 também pode precipitar o aparecimen­to de doenças autoimunes e outras alterações preexisten­tes. Problemas de saúde que a pessoa não sabia que tinha têm maior chance de se tornarem aparentes durante a doença.

Essas são heranças indesejáve­is da pandemia e não podem ser subestimad­as. O número de pessoas que se infectaram pelo novo coronavíru­s no Brasil é grande demais para que não seja criado um plano de estudo e acolhiment­o de pacientes com sequelas duradouras. Não há como ignorar mais esse importante problema de nossa saúde coletiva.

A propósito, a paciente infectada pelo novo coronavíru­s em setembro de 2020 está melhorando. Alguns de seus sintomas têm sido controlado­s com medicação, outros ainda trazem muito desconfort­o. Aos poucos, ela vai retomando sua vida, não sem perceber o rastro deixado pela Covid-19, que nunca mais será esquecida.

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