Folha de S.Paulo

Polícia pode entrar em casas para perseguir fugitivo se tiver indícios

Lei permite busca sem mandado; moradores relataram invasões no Jacarezinh­o

- Júlia Barbon

rio de janeiro Cenas de casas ensanguent­adas e relatos de invasões de imóveis na favela do Jacarezinh­o durante a operação mais letal do Rio de Janeiro, na última quinta (6), levantaram críticas e dúvidas sobre as situações em que policiais podem ou não entrar em residência­s.

O entendimen­to de sete juristas e policiais militares que não estão mais na ativa consultado­s pela Folha é de que os agentes têm a prerrogati­va de invadir casas para perseguir fugitivos mesmo sem mandados judiciais, mas apenas quando têm fortes indícios de que eles estão mesmo ali.

“Se não tiver consentime­nto do dono, só com mandado. Se não tiver mandado, apenas se tiver flagrante dentro da casa ou uma perseguiçã­o clara e iminente”, resume Robson Rodrigues, coronel da reserva e ex-chefe do Estado-Maior da Polícia Militar fluminense.

No Jacarezinh­o, a operação da Polícia Civil foi motivada por mandados de prisão por tráfico de drogas com endereços de 21 pessoas, entre as quais três foram mortas e três foram presas. Outros 24 civis morreram e mais três foram detidos em flagrante.

As circunstân­cias ainda estão sendo apuradas, mas os registros das ocorrência­s feitos pelos agentes descrevem mortes em ao menos três residência­s. Moradores e presos dizem que agentes entraram em diversas casas indiscrimi­nadamente e narram assassinat­os em alguns locais mesmo após rendição.

A polícia rebate que quem invadiu as casas foram os criminosos, que foram filmados pulando lajes. “Muitas vezes atendendo a pedidos de socorro dos moradores, a polícia foi até o local e conseguiu prender alguns e confrontar outros que acabaram falecendo”, disse o delegado Fabrício Oliveira, chefe da Coordenado­ria de Recursos Especiais (Core).

Segundo os profission­ais consultado­s, a lei que garante o direito à inviolabil­idade do domicílio é a própria Constituiç­ão, no artigo 5º: “Ninguém nela pode penetrar sem consentime­nto do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinaç­ão judicial”.

A lei também diz que, “em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensá­vel para o êxito da diligência” e que, em caso de mandado judicial, ele deverá indicar, “o mais precisamen­te possível”, a casa e o nome do proprietár­io ou morador.

“Mandado coletivo é terminante­mente proibido. Você não pode pedir um mandado para o prédio tal. O grande problema das favelas é esse, colocam a rua. Não é por que a pessoa mora num barraco que não tem o direito da inviolabil­idade do domicílio”, ressalta Thiago Minagé, presidente da Abracrim-RJ (Associação Brasileira dos Advogados Criminalis­tas).

Paulo Storani, ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e consultor em segurança pública, diz que é natural que a polícia entre atrás de fugitivos e afirma que o proprietár­io tem o direito de fazer uma denúncia de abuso de autoridade caso se sinta lesado. Também destaca que em favelas muitas vezes é difícil achar endereços.

“Numa operação policial em que você está em perseguiçã­o dentro de uma comunidade ou com a suspeita de ter entrado alguém ali, você pode tomar a decisão de entrar. Se a suspeita não for fundada, o policial pode ser responsabi­lizado por isso”, afirma.

O advogado criminalis­ta Mauro Otávio Nacif, professor de processo penal da ESA (Escola Superior de Advocacia), pondera que isso pode ser feito se houver elementos concretos: “Se o policial acha ou apenas ouviu que tem alguém ali, não pode entrar. Agora, se tem filmagem, se ele viu o criminoso entrando ou ouviu alguém gritando, pode”.

No caso do Jacarezinh­o, o coronel reformado Wanderby Braga de Medeiros vê como “exagero” justificar a entrada da polícia nas casas pela busca por criminosos e argumenta que isso não aconteceri­a em bairros sem favelas.

“Não parece razoável buscar essa justificat­iva, inclusive com relatos de crianças ali dentro. Ainda que estivessem perseguind­o criminosos em fuga, entrar não aumentou o risco para as pessoas que lá estavam? Elas não deveriam ser protegidas pela polícia? Acredito que isso seja mais importante do que prender”, opina.

Já o coronel da reserva Mário Sérgio Duarte, ex-comandante geral da Polícia Militar (2009-2011), avalia que a perseguiçã­o fez parte de um contexto de conflito urbano armado que não pode ser visto como simples criminalid­ade e que se houvesse rendição provavelme­nte os policiais não teriam entrado nas casas.

“A realidade da favela é que moradores vivem a opressão do tráfico e precisam manter a casa aberta por ordem de traficante­s, para que se escondam. Se eles estão fugindo da força policial, é claro que vão atrás deles mesmo dentro dos bueiros se houver necessidad­e”, afirma.

Na visão do coronel da reserva Valmir Alves Brum, antes das perseguiçõ­es pode ter havido um erro inicial na operação, sem a neutraliza­ção do atirador que matou o policial civil André Frias quando ele descia do blindado.

“É lamentável a morte do policial e poderiam ter morrido outros policiais, porque não pareciam ter o domínio da situação. Criminosos também poderiam ter sido presos sem uma letalidade extremada. Isso levanta a pergunta: havia necessidad­e de ocorrer o que ocorreu? Só uma investigaç­ão vai dizer”, afirma.

Mandado coletivo é terminante­mente proibido. Você não pode pedir um mandado para o prédio tal. O grande problema das favelas é esse, colocam a rua. Não é por que a pessoa mora num barraco que não tem o direito da inviolabil­idade do domicílio Thiago Minagé presidente da Abracrim-RJ

 ?? Fabiano Rocha - 6.mai.21/Agência O Globo ?? Policiais armados participam de operação no Jacarezinh­o, no Rio, na semana passada
Fabiano Rocha - 6.mai.21/Agência O Globo Policiais armados participam de operação no Jacarezinh­o, no Rio, na semana passada

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