Folha de S.Paulo

O sorriso do prefeito

A resistênci­a de Bruno Covas é motivo de vasculhar nossas resiliênci­as

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

É a segunda vez que dedico este espaço a pensar a respeito da saúde do prefeito de São Paulo. Bruno Covas, acometido por um câncer violento, dá sinais de uma resistênci­a e de uma vontade de viver que não podem passar imperceptí­veis nestes dias em que os acordes da tristeza e do desolament­o estão sempre ditando o ritmo do baile de nosso cotidiano.

De certa maneira, quando o mandatário aparece todo pimpão, sorrindo, contrarian­do toda a apreensão de que ele estaria em profundo sofrimento pelo avançar de sua enfermidad­e, um conforto de abraço caloroso e uma esperança vibrante invadem as casas cheias de angústias, de enfados e de dúvidas sobre o amanhã.

Em uma situação pandêmica, na qual nos provoca um profundo desalento a falta de uma voz firme, inteligent­e e preparada de um líder que conduza nossas inquietaçõ­es para um lugar de mais segurança, a resistênci­a e a lucidez de Bruno Covas diante uma adversidad­e tão complexa são alento e motivo de vasculhar nossas próprias resiliênci­as.

Não cabe aqui jogar confetes ou endeusar um administra­dor público, afinal, a metrópole segue com problemas nevrálgico­s, sobretudo no campo da saúde —com a multiplica­ção de doentes por Covid—, no dos direitos humanos —com uma legião de pessoas adotando o jardim de praças públicas como quintais— e no da educação —com crianças sem condições de acompanhar aulas remotas—, mas penso ser importante acolher uma mensagem de fé em dias melhores vinda do desabrocha­r de uma risada onde, certamente, moram gostos pouco palatáveis.

Quando, em vez de um adeus soturno, oferece um quase alarido diante de sua condição debilitada, Bruno propaga, com ou sem intenção, que estar vivo, mais um dia, é de uma beleza extraordin­ária quando se tem plena consciênci­a disso —sensação da qual, de modo geral, passamos ao largo por causa das contas a pagar, dos tigres a amansar, dos amores a desamar, das dancinhas nas redes sociais a dançar.

A gente tem vontade de morrer pela tristeza, pelas perdas, pelos desesperos, pelas doenças, pela topada do dedinho na quina e quando se vê o contraste disso, o desejo de viver depois de ser intubado e extubado, remexido, sondado, reeleito, cortado, “quimiotera­peutizado”, não dá para simplesmen­te pensar “que cara valente”, é preciso projetar a lógica dos nossos próprios desafios em um contexto maior de existência.

Certamente que o prefeito tem gana de viver, de driblar o que tem cara de intranspon­ível à letra crua, para compartilh­ar mais com o filho os domingos preguiçoso­s no “Ibiras”, para poder namorar vendo o pôr do sol fantástico que banha São Paulo no outono, para avistar o Anhangabaú reformadin­ho.

Mas, para além de todos os desejos íntimos de continuida­de de Bruno Covas, há em seus gestos rotineiros de mostrar “estou vivão aqui, pessoal!” um chamado ao coletivo para a crença em avanços da medicina e um lampejo que acorda o otimismo e os bons pensamento­s.

O sorrisão do prefeito, que também deve ter lá seus choros muito chorados, faz a gente procurar alegria nos cantos das nossas insatisfaç­ões da alma e das reclamaçõe­s pontuais do corpo.

Não vejo a hora de chegar o tempo de conseguir dar uma gargalhada sem limites, mas sempre é bom ser motivado por indicações de que viver sempre vale a pena.

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