Maior letalidade policial não diminui ocorrência de crimes, diz pesquisador
Para Felipe da Silva Freitas, enfrentamento a facções e milícias exige trazer inteligência para o controle de homicídios e de armas
lauro de freitas (ba) A política de segurança pública de “guerra às drogas” não parece fracassar apenas pelo alto custo em vidas —como visto no massacre do Jacarezinho, em que ao menos 28 pessoas morreram após operação da Polícia Civil do Rio, na última quinta-feira (6).
A alta letalidade das forças de segurança, efeito das megaoperações, também não diminui as taxas de ocorrência de crimes nem afeta os mercados ilegais. É o que afirma Felipe Freitas, doutor em direito e integrante do grupo de pesquisa em criminologia da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana).
“Os dados de que dispomos no país mostram que não há qualquer correlação entre maior número de mortes decorrentes de intervenção policial e menor cometimento de outros crimes”, afirma. “Combater o crime organizado não tem relação com realizar operações policiais como a ocorrida no Jacarezinho.”
Freitas diz que o desafio real no enfrentamento a facções e milícias é o de trazer inteligência para o controle de homicídios e de circulação de armas.
“Uma ação nos moldes da de Jacarezinho não é compatível com a legalidade sob nenhuma circunstância. Se havia inteligência policial e escutas autorizadas pela Justiça era plenamente possível realizar as prisões com menos letalidade
Por que operações policiais como a de Jacarezinho continuam a acontecer no Brasil?
É uma decisão política dos governos em relação a essas comunidades. Não tem como mobilizar aquele efetivo policial, com aqueles tipos de veículos e de armamentos e produzir um resultado diferente. Não é um acidente, é um modelo.
A história da democracia no Brasil é a história de massacres, chacinas e execuções em massa. Se olharmos de 1988 até agora é absolutamente assustador o número de assassinatos praticados no Brasil em diferentes contextos —e é ainda mais escandaloso o número de massacres presididos por grupos estatais e grupos paramilitares.
Na sua avaliação, a ação ocorreu dentro da legalidade, como afirmam as autoridades policiais?
Uma operação naqueles moldes não é compatível com a legalidade sob nenhuma circunstância. Se havia inteligência policial e escutas autorizadas pela Justiça era plenamente possível realizar as prisões com menos riscos e, por consequência, com menos letalidade. A opção por aquela ação tem objetivos políticos evidentes e pretendeu gerar uma cena que foi completada com a coletiva de imprensa da Polícia Civil, na qual o próprio representante da Secretaria de Segurança partiu para o ataque em vez de reconhecer os evidente erros praticados.
Pesquisa recente apontou que a Lei de Drogas foi pouco eficiente. Quais alternativas são possíveis?
A política de drogas no Brasil é completamente desconectada da proteção à saúde pública e da preservação da vida da população. Os custos com a guerra às drogas são de uma proporção aviltante, e os efeitos letais dessa política são injustificáveis. Uma alternativa importante a ser debatida é regular economicamente o mercado de drogas, oferecer políticas públicas de saúde para atenção aos casos de uso abusivo e reduzir o controle penal sobre essa matéria.
Não tem nenhum sentido seguir prendendo milhares de pessoas todos os anos, amontoando os estabelecimentos prisionais, ofertando jovens para serem recrutados nas cadeias pelas facções e realizar operações policiais como a do Jacarezinho que não têm qualquer efeito prático sobre os mercados ilegais. Parar de prender os pequenos varejistas de drogas e elaborar políticas de saúde para o setor são os primeiros passos.
Como se daria uma política de segurança pública que combatesse o crime organizado e não estimulasse a letalidade policial?
Os dados de que dispomos no país mostram que não há qualquer correlação entre maior número de mortes decorrentes de intervenção policial e menor cometimento de outros crimes, o que se vê na maioria das vezes é justamente o contrário.
O desafio real no enfrentamento ao crime organizado –milícias, facções, grupos de extermínio etc– é investir em iniciativas que recoloquem a presença do Estado nestas comunidades e desfaça o poder político, econômico e bélico dessas organizações. Uma política de segurança que queira combater o crime organizado tem que manifestar um compromisso real com o tema do controle de homicídios, com o controle da circulação de armas de fogo, com a desestruturação das fontes de financiamento dos grupos paramilitares e com o combate implacável aos casos de violência e de corrupção dos agentes do Estado.
Muitos movimentos negros afirmam que a guerra às drogas e a violência policial produzem o genocídio da população negra no Brasil. Como avalia o termo?
O genocídio do povo negro é uma constatação antiga do movimento negro que só se confirma ao longo dos anos. O caráter sistemático, estrutural e letal das violências praticadas contra negras e negros no Brasil não deixa dúvida de que é mesmo de genocídio que estamos falando.
Após a morte de George Floyd, os EUA aprovaram um grande projeto de reforma policial. Por que ainda não vimos esse tipo de movimento por aqui?
Eu não quero desmerecer o que está acontecendo nos Estados Unidos, mas eu gostaria de preservar alguma cautela em relação às reformas que estão sendo aprovadas. Sociedades como a brasileira e a americana –marcadas pela escravidão e constituídas a partir de práticas de racismo, violência e discriminação– costumam ser muito resistentes a mudanças legislativas que visam assegurar direitos dos grupos sociais historicamente discriminados.
Por outro lado, é evidente que a sociedade americana deu um passo à frente em relação ao que conseguimos aqui no Brasil. Houve uma onda de debates sobre racismo, sobre a presença negra na cobertura jornalística e sobre a urgência de medidas globais que pudessem conter a violência racial. Nos casos ocorridos no Brasil, a repercussão me parece bem menor, e a cobertura sobre as manifestações do movimento negro são bem menos significativas.
“A história da democracia no Brasil é a história de massacres, chacinas e execuções em massa. Se olharmos de 1988 até agora é absolutamente assustador o número de massacres presididos por grupos estatais e paramilitares