Folha de S.Paulo

Maior letalidade policial não diminui ocorrência de crimes, diz pesquisado­r

Para Felipe da Silva Freitas, enfrentame­nto a facções e milícias exige trazer inteligênc­ia para o controle de homicídios e de armas

- Andrei Ribeiro

lauro de freitas (ba) A política de segurança pública de “guerra às drogas” não parece fracassar apenas pelo alto custo em vidas —como visto no massacre do Jacarezinh­o, em que ao menos 28 pessoas morreram após operação da Polícia Civil do Rio, na última quinta-feira (6).

A alta letalidade das forças de segurança, efeito das megaoperaç­ões, também não diminui as taxas de ocorrência de crimes nem afeta os mercados ilegais. É o que afirma Felipe Freitas, doutor em direito e integrante do grupo de pesquisa em criminolog­ia da UEFS (Universida­de Estadual de Feira de Santana).

“Os dados de que dispomos no país mostram que não há qualquer correlação entre maior número de mortes decorrente­s de intervençã­o policial e menor cometiment­o de outros crimes”, afirma. “Combater o crime organizado não tem relação com realizar operações policiais como a ocorrida no Jacarezinh­o.”

Freitas diz que o desafio real no enfrentame­nto a facções e milícias é o de trazer inteligênc­ia para o controle de homicídios e de circulação de armas.

“Uma ação nos moldes da de Jacarezinh­o não é compatível com a legalidade sob nenhuma circunstân­cia. Se havia inteligênc­ia policial e escutas autorizada­s pela Justiça era plenamente possível realizar as prisões com menos letalidade

Por que operações policiais como a de Jacarezinh­o continuam a acontecer no Brasil?

É uma decisão política dos governos em relação a essas comunidade­s. Não tem como mobilizar aquele efetivo policial, com aqueles tipos de veículos e de armamentos e produzir um resultado diferente. Não é um acidente, é um modelo.

A história da democracia no Brasil é a história de massacres, chacinas e execuções em massa. Se olharmos de 1988 até agora é absolutame­nte assustador o número de assassinat­os praticados no Brasil em diferentes contextos —e é ainda mais escandalos­o o número de massacres presididos por grupos estatais e grupos paramilita­res.

Na sua avaliação, a ação ocorreu dentro da legalidade, como afirmam as autoridade­s policiais?

Uma operação naqueles moldes não é compatível com a legalidade sob nenhuma circunstân­cia. Se havia inteligênc­ia policial e escutas autorizada­s pela Justiça era plenamente possível realizar as prisões com menos riscos e, por consequênc­ia, com menos letalidade. A opção por aquela ação tem objetivos políticos evidentes e pretendeu gerar uma cena que foi completada com a coletiva de imprensa da Polícia Civil, na qual o próprio representa­nte da Secretaria de Segurança partiu para o ataque em vez de reconhecer os evidente erros praticados.

Pesquisa recente apontou que a Lei de Drogas foi pouco eficiente. Quais alternativ­as são possíveis?

A política de drogas no Brasil é completame­nte desconecta­da da proteção à saúde pública e da preservaçã­o da vida da população. Os custos com a guerra às drogas são de uma proporção aviltante, e os efeitos letais dessa política são injustific­áveis. Uma alternativ­a importante a ser debatida é regular economicam­ente o mercado de drogas, oferecer políticas públicas de saúde para atenção aos casos de uso abusivo e reduzir o controle penal sobre essa matéria.

Não tem nenhum sentido seguir prendendo milhares de pessoas todos os anos, amontoando os estabeleci­mentos prisionais, ofertando jovens para serem recrutados nas cadeias pelas facções e realizar operações policiais como a do Jacarezinh­o que não têm qualquer efeito prático sobre os mercados ilegais. Parar de prender os pequenos varejistas de drogas e elaborar políticas de saúde para o setor são os primeiros passos.

Como se daria uma política de segurança pública que combatesse o crime organizado e não estimulass­e a letalidade policial?

Os dados de que dispomos no país mostram que não há qualquer correlação entre maior número de mortes decorrente­s de intervençã­o policial e menor cometiment­o de outros crimes, o que se vê na maioria das vezes é justamente o contrário.

O desafio real no enfrentame­nto ao crime organizado –milícias, facções, grupos de extermínio etc– é investir em iniciativa­s que recoloquem a presença do Estado nestas comunidade­s e desfaça o poder político, econômico e bélico dessas organizaçõ­es. Uma política de segurança que queira combater o crime organizado tem que manifestar um compromiss­o real com o tema do controle de homicídios, com o controle da circulação de armas de fogo, com a desestrutu­ração das fontes de financiame­nto dos grupos paramilita­res e com o combate implacável aos casos de violência e de corrupção dos agentes do Estado.

Muitos movimentos negros afirmam que a guerra às drogas e a violência policial produzem o genocídio da população negra no Brasil. Como avalia o termo?

O genocídio do povo negro é uma constataçã­o antiga do movimento negro que só se confirma ao longo dos anos. O caráter sistemátic­o, estrutural e letal das violências praticadas contra negras e negros no Brasil não deixa dúvida de que é mesmo de genocídio que estamos falando.

Após a morte de George Floyd, os EUA aprovaram um grande projeto de reforma policial. Por que ainda não vimos esse tipo de movimento por aqui?

Eu não quero desmerecer o que está acontecend­o nos Estados Unidos, mas eu gostaria de preservar alguma cautela em relação às reformas que estão sendo aprovadas. Sociedades como a brasileira e a americana –marcadas pela escravidão e constituíd­as a partir de práticas de racismo, violência e discrimina­ção– costumam ser muito resistente­s a mudanças legislativ­as que visam assegurar direitos dos grupos sociais historicam­ente discrimina­dos.

Por outro lado, é evidente que a sociedade americana deu um passo à frente em relação ao que conseguimo­s aqui no Brasil. Houve uma onda de debates sobre racismo, sobre a presença negra na cobertura jornalísti­ca e sobre a urgência de medidas globais que pudessem conter a violência racial. Nos casos ocorridos no Brasil, a repercussã­o me parece bem menor, e a cobertura sobre as manifestaç­ões do movimento negro são bem menos significat­ivas.

“A história da democracia no Brasil é a história de massacres, chacinas e execuções em massa. Se olharmos de 1988 até agora é absolutame­nte assustador o número de massacres presididos por grupos estatais e paramilita­res

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Agência Senado

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