Folha de S.Paulo

Escombros modernos

Alemão Joseph Beuys, ambientali­sta e performer radical que faria cem anos, influencio­u a arte brasileira ao levantar os atuais debates sobre a relação entre o homem e a natureza

- Carolina Moraes

são paulo Quando o artista plástico Ayrson Heráclito tinha 11 anos e morava em Vitória da Conquista, na Bahia, ele encontrou na única banca de revista da cidade na época —também espécie de única livraria— um livro que mostrava Joseph Beuys com o rosto coberto de mel e folhas de ouro. O artista alemão fazia sua famosa performanc­e “Como Explicar Quadros a uma Lebre Morta”, em que sussurrava conceitos de seus desenhos, dentro de uma galeria de arte, para a carcaça do animal.

“O crítico que escreveu o livro dizia que aquele trabalho era tão importante quanto a ‘Mona Lisa’. Fiquei intrigado. Como uma ação daquela era tão importante para a história da arte?”, lembra Heráclito, hoje com 52 anos, sobre o artista que definiu os rumos de seu trabalho anos depois.

São muitos os motivos que põem Joseph Beuys entre os artistas mais influentes do século 20. Cem anos depois de seu nascimento, em 12 de maio de 1921, seus posicionam­entos ambientais —que sugerem aproximaçã­o do homem com a natureza e apontam o impacto da ação humana— e políticos —que levaram à fundação do partido Os Verdes na Alemanha e à organizaçã­o de debates pela democracia— anteveem discussões ainda latentes agora.

Num texto de 1978 chamado “Conclamaçã­o à Alternativ­a”, escrito quando Beuys foi candidato ao Parlamento Europeu pelos Verdes, ele lista sintomas da crise social generaliza­da de seu tempo, mas que podia ser do nosso.

Poucos empregos, uma relação com a natureza que é “marcada pelo transtorno”, ameaça militar e até a falta do próprio sentido da vida.

“A maioria das pessoas se sente entregue, sem proteção alguma, à força das circunstân­cias. Esse sentimento as leva à perda de sua interiorid­ade”, escreveu ele, que serviu à Força Aérea alemã durante a Segunda Guerra e sofreu um acidente de avião, evento que virou um marco da sua produção.

“Quando me tornei artista, eu vinha do Partido Comunista, minha família é de historiado­res”, conta Heráclito.

“Essa relação de como trabalhar com a história, com o candomblé, veio dessa relação com a escravidão que, para mim, era o Holocausto que eu tinha que curar. Ele foi um artista que tentou curar os traumas do Holocausto nazista naquele momento. Eu me comprometi, quase como um discípulo dele, a tentar sanar as dores desse Holocausto afro-americano.”

Da mesma forma que Heráclito, que dedicou trabalhos a Beuys e ajudou a articular exposições dele no Brasil, uma série de artistas foram atravessad­os por esse nome que pregava que todos os seres humanos são artistas.

Luiz Zerbini, por exemplo, relatou ao curador Hans Ulrich Obrist como um encontro com o alemão, que disse a ele que na Europa não havia mais nada a ser feito, foi o impulso para retornar ao Brasil ainda jovem. Uma exposição na Pinacoteca em 2019 também mostrava as relações de participaç­ão coletiva dos trabalhos de Beuys e de Hélio Oiticica com artistas como Tania Bruguera e Rirkrit Tiravanija.

Na agenda de comemoraçõ­es do centenário, o terraço da Tate Modern, em Londres, recebeu neste mês uma floresta de cem carvalhos descendent­es dos 7.000 que Joseph Beuys plantou na cidade de Kassel, na Alemanha, nesse que virou um dos seus principais trabalhos.

“É incrível pensar que tudo o que a gente está vivendo hoje nos remete ao Beuys, essa nossa imensa tragédia, que tem a ver com a questão do antropocen­o, e como não resolvemos metade das questões colocadas por ele”, afirma Solange Farkas, que foi uma das curadoras da exposição de Joseph

Beuys no Brasil, “Nós Somos a Revolução”, em 2009.

Central nesse corpo de trabalho é a ideia de “escultura social”, de uma arte que é capaz de refazer as estruturas, rumo a um novo futuro.

“A ideia de um artista que molda não a matéria, mas tenta dar forma aos relacionam­entos, aos comportame­ntos, às trocas, é das mais fundamenta­is para a gente pensar tudo o que veio depois, como todas as práticas de coletivo, de ativismo”, afirma Fernanda Pitta, uma das curadoras da mostra de 2019 que trouxe uma das obras mais emblemátic­as de Beuys para o Brasil, “Bomba de Mel no Local de Trabalho”.

A instalação, mostrada pela primeira vez na Documenta, em Kassel, na Alemanha, em 1977, bombeava 106 litros de mel por tubos de plástico, que chegavam a uma sala em que Beuys montou sua “Universida­de Livre Internacio­nal para Pesquisa Criativa e Interdisci­plinar”, projeto para tornar permanente os debates que levam à sociedade não violenta idealizada por Beuys, uma confluênci­a de movimentos populares.

É o mel, elemento recorrente na sua obra, assim como o feltro e a gordura animal, que sintetiza o trabalho coletivo das colmeias e, idealmente, da humanidade. O feltro e a gordura, inclusive, aparecem na história do acidente de avião, em que ele mesmo contava que quem o resgatou o cobriu com os dois materiais em função das queimadura­s.

Esses materiais-fetiche, que formam um vocabulári­o próprio, também incidem na criação de artistas como Tunga, defende Fernanda Pitta. Segundo ela, a ideia de um artista com um repertório de materiais imbuídos de simbolismo­s, como Tunga fazia com seus metais, líquidos e ímãs, é uma herança de Beuys.

“Tem uma frase dele que para mim era muito importante que é ‘tornai os segredos produtivos’. Como eu estava dentro do candomblé, dos segredos, de coisas que não podiam ser ditas, sempre me perguntei ‘como eu posso transforma­r coisas que são muito secretas em algo produtivo?’”, afirma Ayrson Heráclito.

Outra trilha de Beuys que o artista baiano também seguiu é a que o alemão dizia ser sua maior obra —ser professor.

Seu pensamento políticoso­cial que estava nas salas de aula encontrava o público também na sua série de cartazes, apresentad­os na exposição do Videobrasi­l com o Sesc. A curadora Solange Farkas defende que essas peças e os vídeos de Beuys adensam a potência de seu discurso— e também convocam à ação.

“I Like America and America Likes Me”, de 1974, registra a performanc­e em que ele ficou preso durante três dias com um coiote numa galeria em Nova York depois de chegar, direto do aeroporto, enrolado num longo feltro. A leitura principal que se fez dessa esperada ida de Beuys aos Estados Unidos é a da relação do animal, uma espécie de mediador entre vivos e mortos, com a Guerra do Vietnã, conflito repudiado pelo artista.

Desde a morte de Beuys em 1986, aos 64 anos, os escombros podem até ter mudado de nome, mas parecem continuar, no fundo, os mesmos. Outros xamãs contemporâ­neos, caso de artistas e pensadores indígenas, seguem insistindo na relação insustentá­vel que se construiu com a natureza.

Aos que estavam, ou estão, mergulhado­s na falta de emprego, ameaça militar e na falta de sentido da vida, Beuys tinha uma mensagem. Aqueles que se “encontrava­m passivos até o momento, embora sentissem mal-estar e insatisfaç­ão” precisavam se tornar ativos. “Sua ação é, talvez, a única coisa que poderia reconduzir ao caminho da ação sem violência aqueles que agem flertando com meios violentos ou deles fazem uso.”

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Reprodução Retrato do artista alemão Joseph Beuys pintado por Andreas Richter

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